MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

24/08/2013

As canções da inocência e da experiência de Michel Laub: A MAÇàENVENENADA


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“O que sei é o que aconteceu comigo” (Michel Laub, A maçã envenenada)

“…porque não é possível voltar a ser ingênuo depois que você deixa de ser”  (idem)

“O tom irônico do início do namoro ou o tom que passados vinte anos soa premonitório?” (idem)

“A história do sujeito é tomada como modo de invocar o passado e reparar o eu. Assim, a nostalgia desloca o sentido de projeto para o futuro, e a questão de como a vida foi vivida vem à tona, ganhando proeminência.” (José Luiz Passos, Doces monstros modernos)

LONDRES

Nas ruas por que passo, escrituradas,

Onde o Tâmisa corre, escriturado,

Vou reparando as faces maceradas,

Que a aflição e a moléstia têm marcado.

 

Em cada grito de Homem ou no grito

Do Infante que de medo se lamente,

Em cada voz ou em cada interdito,

Ouço os grilhões forjados pela mente. (Das Canções da Inocência e da Experiência, de William Blake, em tradução de Renato Suttana)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada na FOLHA DE SÃO PAULO, de 24 de agosto de 2013, ver http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/125500-fiel-a-seus-temas-michel-laub-reflete-sobre-acaso-e-destino.shtml):

Li A maçã envenenada sem saber que era a segunda parte de uma trilogia (iniciada com o excelente Diário da Queda, 2011). Fez diferença? Em certo aspecto, não. Pois Michel Laub é um autor fiel aos seus temas: no novo romance, assim como no anterior ou em Longe da Água (2004), a narração evolui em volutas retomando  um ponto fortuito da juventude, que se revestiu, na dinâmica da trajetória de vida, como signo de desvio, de “queda”, cristalizando a irrevogabilidade do acaso e prefigurando um destino: são as passagens que “em quarenta anos de vida analisada” permanecem numa “zona de sombras”. Agregam-se a esse “instante inflexivo”, continuamente exumado, as amizades e lealdades escorregadias e a reflexão geracional.

A maçã envenenada evoca, já pelo título, o Nirvana  (pois refere-se a um verso da canção Drain You), e aquela concepção romântica  que a morte precoce de um artista carrega, de não conseguir lidar com uma realidade corrompida (“como ele incorporou o espírito de uma época esmagada pelo fim das utopias”). Ao rememorar o suicídio de Kurt Cobain[1], em 1994, revive também o namoro tumultuado com a intensa e destrutiva Valéria, à época do show do cantor e sua banda aqui no Brasil, no ano anterior (a ida ao show é um elemento narrativo da maior importância, muito bem trabalhado): “…um cantor famoso e viciado de Aberdeen que seria só um cantor famoso e viciado de Aberdeen se em 1993 não tivesse a história unida a alguém de Porto Alegre que entendeu errado aquilo tudo”.

O gancho para esse recuo aos anos 1990 é a entrevista com Immaculée Ilibagiza, sobrevivente daquele memorável genocídio em Ruanda (também em 1994), cuja vontade de viver mesmo tendo passado por horrores funciona como a “sombra” desse drama afinal tão burguês.[2]

Equacionando Cobain, o primeiro amor, a sobrevivência, o talentoso autor gaúcho nos oferece suas “canções de inocência e experiência” (não fosse Blake uma referência “romântica” incontornável), ou seja, “aquilo tudo”, contra um pano de fundo basicamente irônico, quando não cínico como foi o da geração sobre a qual se debruça: “…até hoje não sei se os versos no postal eram apenas citações ingênuas de uma música ingênua do Nirvana ou um recado. Eu não sei se era o tom do início do namoro ou dos últimos tempos, a ironia que soava inocente quando eu não conhecia Valéria direito ou o registro perturbado de agora”.

Quando canta a inocência, ou algo muito parecido com ela, apesar da contenção e parcimônia do narrador, o relato é incisivo[3]. Faz falta um aprofundamento da “experiência”[4] e a pergunta no seu bojo: “Uma pergunta que também era: por que eu não consigo agir de outro modo?”.

De fato, sempre elogiada por inserir na narrativa um veio ensaístico, esse é o ponto onde, conforme amadurece e requinta sua fabulação, a prosa laubiana se mostra mais frágil. Raramente sai da zona de conforto, da moldura que adotou como base, eximindo-se de aprofundar os temas perturbadores e dramáticos que suas histórias nos oferecem, contentando-se com afirmações genéricas e alusivas, o que me parece estranho numa obra onde as questões morais são importantes.

Por exemplo, ao falar da sobrevivente de Ruanda: “Adianta esta mulher ter passado por uma experiência tão radical, Valéria, se ao término tudo o que ela faz é dar uma lição aguada de breguice…” Como ele não vai muito adiante na reflexão, fica parecendo a opinião fútil de alguém comodamente refestelado na sua melancolia pós-moderna.[5] O que é injusto, claro, pois duvido que Laub seja tão superficial e errático como vem mostrando na maior parte de suas crônicas (publicadas sexta sim, sexta não, na Ilustrada da Folha), que, por relativizar tudo, e quase não se comprometerem com nada, a não ser um vago liberalismo estético (ressumando no ético) soam quase anódinas. O que ele, como autor, não pode, ou não deveria, é continuar mantendo a mesma parcimônia de seus personagens e suas meias-vidas (“…essa sensação quase absoluta, que às vezes me assustava porque é só estender a liberdade e de um instante para outro você não tem mais passado, nem sente falta de nada porque é como se nada tivesse acontecido, ou só as coisas que você escolheu, as lembranças boas e inofensivas, e nada do que você disse ou fez a uma pessoa tem conseqüências porque nunca mais precisará encontrá-la, nem pensar nela, nem imaginar e confrontar o que foi feito dela em outro tempo e outro continente numa vida que às vezes nem parece ter sido a sua”).

E aí, a afirmação de que saber que A maçã envenenada é o livro do meio de uma trilogia faz diferença, se tivermos a expectativa de um aprofundamento e um adensamento com relação ao primeiro volume do projeto (lemos que se trata de uma trilogia sobre “os efeitos individuais de catástrofes históricas”), e isso não se dá.

Quarenta anos de vida analisada já dão matéria para cantar também a pós-inocência. Pois Laub tem muito a dizer.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/11/08/auschwitz-alzheimer-alcoolismo-amizade-e-quebrando-o-circulo-natalidade-diario-da-queda-de-michel-laub/

Kurt-Cobain-2Immaculee_Ilibagiza

TRECHO SELECIONADO

“No direito existe o dolo eventual , o ato de conscientemente assumir o risco de cometer um crime por meio de uma conduta de imprudência, negligência ou imperícia. É o caso de quem dirige bêbado, e fico pensando se o motorista também não faz uma espécie de pacto na primeira dose de caipirinha ou se pensa apenas no limão e no açúcar e na leveza e depois euforia tão raro num ano em que tudo deu errado desde o início. Duas décadas depois, com as memórias embaralhadas pela consciência do que aconteceu, a culpa e o alívio de ser tudo apenas um capítulo do passado, a vaidade de querer integrar uma trama heróica de sobrevivência, na qual se podem incluir as drogas e os esportes perigosos e as viagens para lugares ermos onde pode haver um animal selvagem ou um psicopata, o assalto que se pode sofrer e as doenças possíveis quando você fuma e come gordura e trepa sem camisinha, e eu poderia garantir que era nisso que pensava ou era isso que pretendia ou era essa a possibilidade que estava no horizonte ao pedir a segunda dose e a terceira e a quarta e a quinta e a sexta?

    Nos vinte anos posteriores a 1993 eu eventualmente detestei o trabalho, os relacionamentos que não deram certo, e poderia listar dez ou vinte ou noventa situações em que é tentador pensar que tudo acabou  por antecipação, portanto não há mais dor e problemas e estamos apenas cumprindo os últimos atos de uma pantomima comandada por um titereiro que gosta de brincar. É verdade que nem todo mundo nasce com o gene defeituoso que permite ir além desse instante de devaneio, e na sequência você termina o expediente ou o namoro ou o que for preciso, uma pessoa como qualquer outra, achando bom caminhar depois da chuva e vestir o cheiro de grama e tomar sopa e dormir bem quentinho debaixo de um cobertor no dia do aniversário, mas o fato é que esse instante existe ele pode ser decisivo para a sorte de quem nasce destinado a se confrontar com ele, e é por isso que em quarenta anos de vida analisada a única passagem que permanece numa zona de sombras é o período próximo do show do Nirvana.”

A ROSA DOENTE  

Rosa, estás doente!

O verme invisível

Que voa, inclemente,

Na noite terrível

Encontrou teu leito

De róseo prazer:

Seu amor secreto

Destrói teu viver.

 

MINHA BELA ROSEIRA

Uma flor me foi ofertada

Que maio jamais viu tão bela;

Eu disse: “Já tenho Roseira” –

E assim desdenhei recebê-la.

De minha Roseira tão bela

Cuidei, dia e noite, zeloso;

Porém minha Rosa deixou-me:

Seus espinhos foram meu gozo

(Das Canções da Inocência e da Experiência, de William Blake, em tradução de Renato Suttana)

CANÇÕES DE EXPERIÊNCIA


[1] Seria interessante uma leitura comparativa do romance de Laub com outra reflexão ficcional recente (e memorável) sobre o suicídio (“a morte de alguém que foi tão importante na sua vida”), O céu dos suicidas (2012), de Ricardo Lísias.

[2] A sincronicidade temporal que quase se revela perversa entre as várias esferas (Valéria e o narrador, Kurt Cobain, o genocídio) me lembrou uma reflexão similar (mas bem mais aprofundada e detalhada) de William Styron em A Escolha de Sofia (1979).

[3] Acho lindo, por exemplo, quando ele narra a iniciação sexual: “Dizem que ninguém esquece esse momento, a intensidade e o alívio e a gratidão de perceber que é tão simples…” (e logo depois, ele entra com o leitmotiv do título, o cerne do livro, os versos de Drain You relacionados à sua relação com Valéria).

[4] “Como evitar que a memória se misture com a culpa, a autopiedade e a autoindulgência nos anos e décadas que seguem um evento assim?”, ele se pergunta diante de Immaculée.

[5] Por exemplo, parar para pensar que, depois de uma experiência tão radical, talvez não tenha muita importância para Immaculée Ilibagiza expressar-se através de um discurso mais “refinado” e afinado com padrões estéticos “exigentes”. Talvez esses padrões sejam muito pequenos, acanhados, para ela, e tanto faz que os cultuadores dos padrões não bregas, a ouçam e lidem com ela com um respeito condescendente e envergonhado.

Em todo caso, o livro faz um paralelo bem interessante entre Immaculée e o Tenente Pires (o narrador estava servindo o exército à época dos acontecimentos cruciais de A maçã envenenada), um entusiasta da conversão evangélica, também com um discurso brega, mas que de alguma forma parece “autêntico”, apesar dos sub-tons “irônicos” (ah, a ironia, sempre ela). Os dois são os antípodas da desistência: representam a sobrevivência e a persistência.

Novo colunista da Ilustrada, o escritor Michel Laub, 39, autor de "Di·rio da Queda".1146932_10201817428062445_663829105_o

1 Comentário »

  1. Republicou isso em O LADO ESCURO DA LUA.

    Comentário por anisioluiz2008 — 24/08/2013 @ 22:58 | Responder


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