No meu post sobre Súplicas Atendidas, de Truman Capote, (VER https://armonte.wordpress.com/2013/07/28/destaque-do-blog-suplicas-atendidas/)
eu afirmava que a tradução de Guilherme da Silva Braga era “cheia de escorregões e soluções ruins” (estendendo o reproche a uma parte dos tradutores da L&PM). Com toda a razão, o referido tradutor se referiu ao tom genérico e vago do meu comentário. pedindo que eu apontasse exemplos:
“Olá, Alfredo!
Não nos conhecemos, mas achei no seu blog uma referência à minha tradução “cheia de escorregões e soluções ruins” do livro Súplicas atendidas, do Truman Capote.
Como a crítica foi feita nos termos mais genéricos possíveis (sem um único exemplo) e é dirigida não só a mim mas todos os tradutores da editora, gostaria se possível que você me apontasse alguns desses deslizes para que eu possa analisá-los e comunicar à L&PM qualquer mudança pertinente. “(26.01.10)
Não me fiz de rogado, é claro, e logo enviei uma lista de trechos, expressões e soluções que me desagradaram ou me pareciam estranhos:
… em alguns casos, talvez a revisão tenha falhado também, acredito que você também não é responsável pelo título: “Preces atendidas” seria mais exato, por causa da esfera religiosa da citação e porque todo o mundanismo do livro se contrapõe a ela, num sentido muito moralista;
“Agradeço muito os comentários mais detalhados enviados por email. Acho que tem um pouco de tudo: críticas em que você tem razão, críticas em que se trata de simples gosto pessoal (onde “gosto pessoal” é equiparado a “bom” e “gosto alheio” a “ruim”) e críticas relativas a trechos não há erro algum ou impropriedade alguma.
Alguns esclarecimentos gerais sobre opções tradutórias: não traduzo nomes de logradouros e não ponho notas de rodapé. Há quem goste e há quem não goste, mas são opções tão válidas e defensáveis quanto traduzir logradouros ou pôr as famigeradas (e na minha modesta opinião execrandas) notas de rodapé.
Quanto a “Hadrian”, você tem toda a razão — foi um deslize e vou avisar a editora.
“Nureyev” e “Nuriêv” estão ambos corretos e dependem apenas da norma usada para se transliterar do russo, mas as formas com Y em geral são meras cópias da transliteração inglesa, enquanto as versões com I seguem uma grafia mais de acordo com a nossa língua.Compare “Dostoevsky” com “Dostoiévski” ou “Tolstoy” com “Tolstói”, por exemplo.
A suposta preguiça na resolução do trocadilho Billy/billy explica-se simplesmente porque não há trocadilho: “billy” não é gíria para “pênis” em inglês. O personagem simplesmente chama o pênis do cliente pelo nome deste, da mesma forma que se poderia chamar o pênis de um sujeito chamado João de “joãozinho” ou algo assim.
Observação de Alfredo Monte (também em função dos comentários gerados pelo post)- Na verdade, nunca pensei que “billy” fosse gíria para pênis, só achava que poderia haver uma adaptação para o português da brincadeira.
Os termos especificamente gays parecem realmente não estar de acordo. Também vou ver se resolvo isso melhor e comunico a editora.
“Estar com dois corações” é uma expressão bastante comum — ao menos por aqui (Porto Alegre) eu ouço com certa freqüência. O Google também registra mais de onze mil usos dessa mesma construção só na primeira pessoa do presente do indicativo, com o que se pode afirmar com razoável margem de segurança que se trata de expressão conhecida. Significa mais ou menos “não conseguir escolher entre duas opções por querer a ambas” (como em “Estou com dois corações — não sei se vou para a praia ou para a serra”, dando a entender que ambas opções são tão boas que é difícil escolher).
“Meio de negócios” quer dizer “mais ou menos como de negócios”, como se costuma dizer em linguagem corriqueira. Aqui já aproveito para ressaltar que esse livro destoa completamente, em termos estilísticos, de quase tudo o que o Capote escreveu — é muito mais coloquial e talvez (não sei) isso tenha afetado sua impressão a respeito da tradução como um todo. Mesmo em inglês, a linguagem do Capote deste livro pouco lembra o Capote de Bonequinha de luxo ou dos contos, por exemplo.
“Vinha amarelo” é simplesmente um tipo específico de vinho. Se chama assim mesmo em português (o Google registra cerca de 6.000 ocorrências).
O trocadilho com “bastardo”, é verdade, fica mais fraco em português. Mas simplesmente não há como resolver de maneira muito mais satisfatória — se você conhecer algum termo que queira dizer tanto “filho ilegítimo” como “filho-da-puta” na nossa língua, por favor queira me comunicar e prontamente pedirei a alteração. Esse é um exemplo bastante característico de crítica fácil a um problema tradutório para o qual uma solução ideal é absolutamente difícil de encontrar.
Sobre o livro da Collette: não há tradução para o português. Daí a opção por não traduzir (geralmente eu só traduzo os títulos de obras para as quais existe tradução, para evitar dar ao leitor a impressão — nesse caso, falsa — de que o livro existe em português).
Quanto a “não levo”, concordo que pode não ser muito comum, mas daí a dizer que não existe ou que é tradução malfeita vai um longo caminho. Uma busca por “não levo no cu” no Google, por exemplo, dá quase cem resultados.
“Lambedora de carpete” é um termo baseado na expressão bastante comum “lamber carpete” (fazer sexo oral em uma mulher, quase sempre com a implicatura de que quem faz sexo oral é também uma mulher).
Em relação às regências apontadas, você também tem razão, embora meia dúzia de erros desse tipo em um livro de 200 páginas não me pareçam justificar o emprego do termo “desleixo” em relação ao trabalho realizado. Na verdade foi o que me incomodou na sua crítica: não o fato de estar sendo criticado — o que faz parte, embora nunca seja agradável –, mas por simplesmente ver chamado de “desleixado” um trabalho que pode ter sido feito com qualquer coisa, menos desleixo.
Como você pode ler acima, pelo menos algumas das soluções criticadas com termos tão contundentes no blog são perfeitamente defensáveis e redigidas em português cursivo. Claro que daí a agradar vai um longo caminho — a meu ver, tão longo quanto o que separa a opinião perfeitamente legítima de “não gostei da tradução” ou “eu teria traduzido diferente” da opinião questionável (em vista dos argumentos acima) segundo a qual a tradução foi feita com desleixo.
Seja como for, agradeço o tempo que dedicou a essa correspondência.” (28.01.10)
Creio também (e por isso pedi permissão a ele para divulgar nossa pequena correspondência) que as nossas observações mais detalhadas serão úteis e oportunas ao leitor do livro traduzido e do meu blog.
“Oi, Alfredo!, Se quiser postar os esclarecimentos, fique à vontade, desde que eventuais comentários em resposta sejam feitos com respeito ao meu trabalho e também ao dos tradutores em geral. Naturalmente isso não o impede de tecer mais críticas se achar que esta é a coisa a fazer — apenas pressupõe que estas sejam redigidas com o mesmo bom-senso e a objetividade demonstrados no seu email, e não nos termos genéricos e abrangentes usados anteriormente no blog. Parece-me que críticas nos moldes dessas feitas no seu email só tem a acrescentar a essa relação tradutor-leitor (você apontou erros indiscutíveis pelo menos em relação ao nome “Hadrian” e às gírias do circuito gay — que pretendo corrigir em edições posteriores –, e acredito que pelo menos um ou dois comentários meus devam tê-lo convencido de que o que parecia ser erro não era), ao passo que menosprezar o trabalho do tradutor não contribui em nada para qualquer discussão que se pretenda minimamente séria ou útil a respeito do assunto.
Se estiver de acordo, vá em frente. Fique à vontade para corrigir quaisquer erros de digitação também (notei que comi um pedaço de uma frase logo no início do meu email e escrevi “vinha” amarelo, entre outros)”.(28.01.10);acho, por essa última observação que talvez ele pense que eu tenha uma sanha assassina andando à cata de erros e deslizes; só sou um pouco detalhista demais…
[…] extra! Alfredo Monte × Guilherme Braga Alfredo Monte, no seu blogue, fez uma crítica genérica ao trabalho de Guilherme da Silva Braga. O Guilherme escreveu […]
Pingback por Edição extra! Alfredo Monte × Guilherme Braga « Tradutor Profissional — 03/02/2010 @ 19:51 |
Alfredo, conheço o Guilherme faz tempo e comecei a ver o teu blogue depois que a Denise Bottmann me contou que você tinha criticado o trabalho dele.Fico muito satisfeito e, como tradutor, gratíssimo, por você ter se dado ao trabalho de mencionar especificamente o que achou infeliz, que o Guilherme tenha respondido e que você tenha publicado a resposta.
Todos nós só ganhamos com isso.
Meus parabéns a ambos.
Comentário por Danilo Nogueira — 03/02/2010 @ 20:00 |
prezado alfredo, muito civilizada a conversa de ambas as partes, parabéns aos dois. às vezes a gente, como tradutor (falo um pouco por mim), tem uma sensibilidade um tanto exacerbada, o que não foi o caso aqui da postura do guilherme, sóbria e atenciosa. torço para que seja um novo marco no relacionamento entre críticos e tradutores.
abraço
denise
Comentário por denise bottmann — 03/02/2010 @ 20:24 |
Que bom que a atitude de semideuses e intocáveis não se manifestou aqui nem no crítico nem no tradutor! Vivi para ver isso…
Comentário por Adail Sobral — 03/02/2010 @ 21:26 |
Na verdade, Alfredo, a gíria inglesa para pênis é Willy, não Billy. Nisto o Guizo tem toda a razão, não há qualquer trocadilho.
Sempre me divirto no inverno britânico quando ouço dizerem “my chilly willy”…. lembro do pingüinzinho (com trema em homenagem ao Guizo) do desenho animado.
E para jogar confete, comecei a ler a tradução do Guilherme do Lovecraft. Este é autor para gente grande traduzir.
Comentário por Ana Iaria — 04/02/2010 @ 4:08 |
Diálogo interessante e construtivo. Agradecimentos ao Danilo que indicou o link, mas sobretudo ao Guilherme e ao Alfredo.
Gostaria apenas de acrescentar um detalhe profissional (eu também sou tradutora, do português para o italiano). Conviver ao longo de meses com um livro e seus personagens, fazendo o maior esforço para “reescrever” aquela obra de uma forma mais objetiva possível (não uso o adjetivo “fiel”, pois acho muito ultrapassada a questão sobre “as belas infiéis” e o trocadilho italiano “traduttore traditore”), é menos simples do que parece. Um leitor que entre pela primeira vez em contato com uma obra pode colher defeitos ou eventuais deslizes que escapam a quem trabalha o tempo todo com o original debaixo dos olhos. O trabalho de revisão e edição deveria servir exatamente para isso, mas nem sempre consegue desatar todos os nós de uma boa tradução. Não existe a tradução perfeita, nem tampouco existe um tradutor que possa se dar ao luxo de dedicar à “reescritura” de um livro o tempo que seria efetivamente necessário à produção de um trabalho isento de quaisquer enganos.
Não levar na devida consideração os limites acima indicados pode transformar a crítica mais zelosa numa conversa de botequim: somos todos técnicos da Seleção no dia seguinte ao jogo, mas acredito que o trabalho do Dunga seja um pouco mais complicado do que parece ao torcedor comum… ou não?
Comentário por Sandra B. — 04/02/2010 @ 8:20 |
relendo agora este post, que já havia lido há uns meses.
…
saiu agora a tradução do guilherme braga para “o morro dos ventos uivantes”. fiquei curioso para vê-la.
um dos motivos é o fato de ele ter atentado para os diferentes registros lingüísticos das personagens, algo sobre que eu havia lido em uma dissertação de mestrado da usp (a tradução do socioleto literário: um estudo de wuthering heights – da solange peixe pinheiro de carvalho).
uma nova tradução d’o morro… já seria motivo para eu me interessar; com essa novidade, o interesse aumenta.
=]
abraço, alfredo.
saudades, man.
Comentário por niltonresende — 16/07/2011 @ 23:56 |
Obrigado pela dica, Nilton, assim tenho a oportunidade de reler o romance de Emily Brontë, que foi muito importante para mim nos meus começos de leitor.
Abração (e saudade também).
Comentário por alfredomonte — 17/07/2011 @ 16:55 |