“Manaus é tão triste que às vezes tenho a sensação de estar morto há muito tempo. Quando caminho pelo Porto e vejo barcos ancorados, recordo-me de pessoas que escrevem mal.” ( Diego Moraes, trecho de Cansaço, em A fotografia do meu antigo amor dançando tango)
“Era tão drogado que escrevia como trem descarrilando e num estilo de matar personagens num jeito só dele.” (Diego Moraes, trecho de Travadão, em A fotografia do meu antigo amor dançando tango)
“Meu amor é guiar este trator na escuridão.”
“As definições de mágoas foram atualizadas.” (Diego Moraes, A solidão é um deus bêbado dando ré num trator)
(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 30 de abril de 2013)
I
“__ Sabe o mais escroto de ser Poeta?
__ Não faço a mínima ideia.
__ A gente não para de pensar nem um segundo…” (trecho de Abre um mar no espelho do banheiro, de A fotografia do meu antigo amor dançando tango)
A princípio fiquei desconfiado com A solidão é um deus bêbado dando ré num trator, coletânea de um jovem autor de Manaus, lançada pela pequena editora Bartlebee, de Juiz de Fora[1]: boa parte dos 139 poemas contém às vezes uma frase, com a mesma toada aforismático- epigramática do título. Tirando alguns mestres (Oswald de Andrade, Millôr Fernandes, José Paulo Paes são os que me acodem à memória de imediato), essa forma convida à facilidade (e esta ao esquecível). Para piorar, uma apresentação insistindo na “visceralidade” do poeta; ora, caracterizar um artista como visceral se tornou um clichê tão vazio, propício para retóricas ocas, quanto falar em “transparência” ou em “sustentabilidade”.
Mas, visceralidades à parte (o que não poderia deixar de acontecer com um admirador de Bukowski, o autor “visceral” por excelência[2]), não há facilidade, frouxidão, nada para ser esquecido, em A solidão é um deus bêbado dando ré num trator. Como prolixo incurável, sempre admiro aquele que é capaz de dizer muito com o mínimo, e assim como outro escritor jovem e portador do “charme do dizer mínimo”, o gaúcho Éder Fogaça, Diego Moraes o tem de sobra. A diferença entre os dois é que, enquanto o talentoso do Sul, na sua exatidão, é mais para suave e sutil, o talentoso do Norte é mais pândego e paradoxalmente “derramado”, algo assim como a diferença entre a prosa de Lygia Fagundes Telles e Hilda Hilst[3].
Diego tem uma linguagem carismática, uma incrível capacidade de criar uma dicção lírica que, escorregadia, flerta com epigramas, micronarrativas e o mais arrebatado lirismo, que compensam uma certa presença demasiada da entidade “Literatura”. Ele mesmo diagnostica que há literatura (às vezes mais como pose do que como inquietação autêntica) demais na vida de muito escritor em desmame por aí, e experiência da “vida” (por mais discutível que seja a tal “experiência da vida”) de menos. Se “Deus é uma caneta bic azul e a vida um monte de rabiscos literários numa folha de papel almaço”, “Se não fosse a literatura, eu seria mais um playboy idiota/mexendo os quadris numa festa à fantasia”, e então “Uma geração inteira fazendo literatura como se estivesse/comendo coxinha na hora do recreio”[4]. Não você, Diego.
II
“… meu desgosto é da cor de um pântano e mesmo assim continuo escrevendo”
Um lirismo a contrapelo: uma angústia palpável e desmoralizante convive com percepções e imagens que roçam o haicai, se o pensarmos numa modulação radicalmente moderna: “Ela só de calcinha abrindo desastrosamente a latinha de atum/Chupando sangue do dedinho lascado/Fazendo carinho no bicho em cima do 2666 do Bolaño”; “Bússolas quebradas/Cartas anônimas nunca me disseram nada/Isso não é literatura. É só minha dívida no Bradesco”.
Por caminhos tortuosos, roídos e varridos pelo rancor ou pelo câncer (“Próxima estação: Consolação./Hoje é rock in roll. Amanhã é solidão num hospital com câncer”), pela esquizofrenia ou pela overdose, pela ressaca infernal ou pelas referências à cultura pop do tipo mais desesperado[5], o eu lírico predominante em A solidão é um deus bêbado dando ré num trator é aquele mesmo (só que totalmente deste nosso século, sem nada anacrônico) “gauche” na vida, piadista de si mesmo, que forneceu as senhas para o lirismo superior de um Drummond ou de um Bandeira (nem sei se são influências que o autor reconhecerá, mas lá estão, queira ou não queira): “Você mora longe/Não tenho binóculo/Você num castelo/Não sei tocar violoncelo/Você pinta os cabelos/Não me olho no espelho/Você tem olhos verdes/Roubaram minha bicicleta”.
Um lirismo muito localizado: “Cartas de ex-namoradas viraram sábados//Parece que as coisas que escrevi quando estava infeliz tornaram-se/pássaros mergulhando no chafariz// Eu sou a solidão da cidade de Manaus”. Um Drummond que tivesse como irmão xifópago Plínio Marcos: “Sensação escrota de não entender as coisas/Às vezes penso que sou adereços de um carnaval de 1977”; “A polícia não liga/ Solidão não preenche ficha de condicional”. Há mesmo um inesperado toque de Adélia Prado (que é da mesma linhagem) em: “Deus manda tsunamis como minha mãe joga farelos de pão no Rio Amazonas/Faz pequenos redemoinhos azuis no meio da confusão/ Se eu fosse cineasta, pediria para ela lagrimar e falar bobagens de mansinho/A gente pensa que não, mas os peixes entendem”.
Portanto, mais do que falar sobre uma “Literatura” que ninguém sabe direito onde está e o que seria exatamente, ele dialoga com a melhor literatura lírica feita em nosso país após o modernismo[6]: “Ligo o Arno/As folhas viram garças desembestadas/Correm pelo chão gélido/Transam com as paredes e não dão poesias.” Dão sim, Diego.
III
“__ Não queria que as coisas ficassem num tom sépia—disse Frederico batendo as cinzas do Marlboro.
__ Estão pretas—disse Carla fechando os olhos numa sensação via-láctea.
__ Vão ficar azuis. Prometo.” (trecho de Polônia, de A fotografia do meu antigo amor dançando tango)
Às vezes todos os elementos se entrelaçam com fôlego maior: “Um índio bêbado escrevendo peças de teatro que nunca serão montadas//Seu vizinho desmanchando automóveis e revendendo tudo a preço de banana//Sou tão carente que entro de cadarços desamarrados na padaria/só pra ver se ela se importa e diz alguma coisa// Anteontem andei de roda gigante e o cara disse que não era preciso/pagar o ingresso porque eu parecia o avô dele//O mais foda é que só tenho 29 anos”.
Outro belo momento de respiração mais longa: “Você disse que sonhos é como fazer musculação//Você disse que Vou à Bahia leva crase//Você disse que queria adotar um cachorrinho e fazer Teatro/ de Rua em São Paulo//Você disse que Roberto Piva era o poeta mais lindo do mundo//Você disse tantas coisas bacanas quando eu tava fudido// Você disse que eu sairia dessa e levou livros e cigarros quando/eu tava internado naquela clínica para drogados//Você foi minha garota e foi foda ver seu sorriso de mãos dadas/com outro cara// Sempre fico sem jeito com o meu passado…”
Não sei se A solidão é um deus bêbado dando ré num trator foi um momento feliz, que não se repetirá, ou se a forma aqui tão concentrada e eficaz poderá virar maneirismo fácil, fórmula, cacoete banal. Só sei que, caminhando entre os muros e monturos da condição humana, é muito mais estimulante imaginar que eles estejam grafitados por esse grande lírico na periferia do “espetáculo de crescimento” brasileiro: “Você cai uma vez/Quebra o braço/Você cai duas vezes/Quebra a perna/Você leva paulada na rua/Escreve um poema/Você leva facada/Escreve uma crônica/Você leva tiros/Escreve um Romance/Você morre/Deus acha que é peça de teatro e aplaude”.
ANEXO- Texto selecionado:
“Duas semanas atrás eu estava à procura de alguém que fosse
[capaz de perdoar
Que fosse capaz de esquecer os borrões do desgosto e seguir em
[frente como um navio desviando dos bancos de areia
Triste
Agora percebo que morri e reencarnei num Sebo cheio de
[livros de poemas velhos.”
[…] o livro de poemas de Diego Moraes, A solidão é um deus bêbado dando ré num trator. Conferir aqui, em seu blog Monte de […]
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