MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

19/04/2013

A poética do sorrateiro: “As Meninas”, de Lygia Fagundes Telles


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https://armonte.wordpress.com/2013/04/19/historias-de-desencontro-entre-lygia-fagundes-telles-e-seus-contos/

(as anotações abaixo foram escritas em maio de 2009)

“As Meninas” e o desenho do tapete (imutável?)

Lendo as situações retratadas nos contos de Antes do baile verde (e em boa parte da obra de Lygia), vemos que basicamente se trata de personagens “enredadas” presas na proverbial ciranda petrificada, no aquário (não por acaso os títulos dos seus romances iniciais, Ciranda de pedra; Verão no aquário). Apesar dos acordes dissonantes, é um mundo em que a estagnação e a decadência permeiam as relações de forma quase patológica, sinistra. Paradigmático, nesse sentido, é o destino do cliente de “A caçada”, sugado para dentro da tapeçaria que retrata uma cena que reconditamente, a princípio, depois com mais força, até chegar a um ponto premente, convoca a sua participação, a sua “reentrada” fatalística no palco, do qual ele era peça integrante sem nem o saber.

Em As meninas, no capítulo em que Lião, uma das meninas do título (baiana revolucionária, que justamente está se mandando para a Argélia com o objetivo de se encontrar com o amante, também militante, que fugiu às garras da ditadura), visita (a fim de pegar algumas roupas) a mãe de Lorena Vaz Leme (de família rica, porém decadente, riqueza rural que vai sendo desgastada por empreendimentos infelizes e tresloucados), há a seguinte descrição de desenhos no tapete:

Os olhos acostumados à penumbra viam melhor o desenho enrodilhado mas nítido: o tigre perseguia a gazela até montá-la nos dois lances seguintes, cravando garras e dentes em seu flanco de onde escorria um filete de sangue aguadamente azul. Outras gazelas perseguidas e abocanhadas se multiplicavam na lã e seda da miniatura oriental. Por mais que corressem, como corriam!, estavam todas condenadas. Alisou a cabeça espavorida da que saltava na moita. Procurou no intrincado dos arabescos de folhas um caminho diferente que a gazela pudesse fazer para escapar do tigre iminente: mas teria que sair do tapete. A volúpia com que os homens criam e descriam a fatalidade em tudo quanto tocam. E depois atribuem a responsabilidade aos deuses. Você é livre, soprou no ouvido em pânico da gazela. Agora era livre. Ainda era livre…”

A mãe de Lorena (que tenta enganar o tempo com plásticas, amantes mais jovens, baladas) representa a quintessência desse fatalismo representado nos desenhos do tapete. No diálogo com Lião, ela diz: “o terrível da vida é que as coisas acabam”. É automistificação, pois é justamente o contrário. O terrível da vida, em Lygia Fagundes Telles, é que certas coisas nunca acabam. Ficam mofando como a tapeçaria do conto para depois nos pegar desprevenidos e nos sugar para o seu mundo gasto, petrificado, fatalístico. E é nesse perigo que vivem Lorena e Ana Clara, as outras meninas da história, embora com origens sociais quase que antípodas. Lião é a única que pode subverter esse perigo do desenho fatalístico do tapete, das coisas que parece que acabaram, mas nunca acabam. É difícil dizer isso, sem parecer edificante ou parecer estar procurando uma “mensagem” num romance tão complexo, mas ela é o pólo positivo do romance, o fiel da balança, é a novidade no mundo da ciranda petrificada. Ela é o que As meninas traz de novo à ficção de Lygia, e o que torna mais bonito esse novo elemento é a sua ligação com os outros fios da trama que ecoam as recorrências da autora com sua prosa toda feita de “delicadezas perigosas” (é assim que Lorena caracteriza seu gato sumido, Astronauta).

O romance é constituído por doze capítulos. Há a presença da terceira pessoa, da primeira (em geral, tão intercaladas que é preciso um esforço didático para destrinçá-las), mas no geral predomina uma terceira pessoa em “discurso indireto livre”, ou seja, uma 3ª. pessoa que parece contaminada pelo foco da primeira, de tal forma narrador e personagem se misturam (parece difícil e muito técnico, porém As meninas, que é um romance altamente literário e sofisticado, parece fluir “naturalmente”).

No primeiro capítulo, o foco está em Lorena, no seu mundo-concha, na presença dos seus “mortos” e “fantasmas” (mesmo que estejam vivos, como o tal amante misterioso, M.N.), Lião é a amiga folclórica (mas que aparece em cena e com a qual ela conversa), que tem tudo para desagradar em termos de impacto físico (como sua tendência a desleixar a higiene), assim como também é escorregadia a visão que temos da outra moradora do pensionato de freiras, Ana Clara, que domina o foco no segundo capítulo, no qual justamente Lião aparece bem distanciada, apenas como uma referência, enquanto Lorena entra sempre no campo das ruminações turvas da nada clara Ana:

“Resolvo tudo. Então fico verdadeira.´Só peço a Deus pra ser sempre verdadeira´, ela disse não sei quantas vezes naturalmente com intenção de. Verdadeira. Com dinheiro também fico, pomba. Fico a própria boca da fonte jorrando a verdade. É fácil dizer a verdade na riqueza…”

O trecho acima é importante porque é Ana Clara, a drogada, mentirosa, enrolada, malaca, quem está com a palavra, confrontando o seu ser e a sua consciência com Lorena, a quatrocentona, refinada, sutil, neurótica . Como nós cohecemos o “lado” de Lorena igualmente, é fácil reconhecer a má fé e a implicância, o ângulo tendencioso da visão turva de Ana Clara sobre a amiga/desafeto. Nenhuma afirmação, em cada um dos lados, é completa porque só há determinados dados.

Concha e tabula rasa. A concha querendo a “vida impecável”, limpa, arrumada, ordeira,quase diáfana, como se não houvesse caos dentro e fora; a tabula rasa desejada pela “dançada”, que tenta se fazer acreditar que há um ponto em que a vida possa ser reformada/reformulada, o passado anulado, que se possa começar do zero, toda a fragmentação interior, a miséria psíquica, reordenadas numa estrutura unívoca e harmônica. Duas faces da mesma automistificação, embora a lucidez ronde avisando que são tão somente automistificações (pois elas não são nada bobas, e Ana Clara, querendo ficar chapada, admoesta o namorado traficante que continua “podre de lúcida”). O roque-roque do pensamento-realejo roendo o (e rodando pelo) cérebro, os recalques e obsessões indo e vindo. Lião, nesse ponto, é como a realidade (caótica e opressora): vem de fora, exige o posicionamento, o comprometimento que ambas tentam recusar de modos diferentes e igualmente irrisórios (Joan Didion: “ninguém está isento do movimento geral):

“Bom é ficar olhando a sala iluminada de um apartamento lá adiante, as pessoas tão inofensivas a rotina. Comem e não vejo o que comem. Falam e não ouço o que dizem, harmonia total sem barulho e sem braveza. Um pouco que alguém se aproxime e já sente odores. Vozes. Um pouco mais e já nem é espectador, vira testemunha. Se abre o bico para dizer Boa noite! passa de testemunha para participante. E não adianta fazer aquela cara de nuvem se diluindo ao largo porque nessa altura já puxaram a nuvem para dentro e a janela-guilhotina fechou rápida. Eram laços frouxos? Viraram tentáculos”.

Como variações musicais, o esquema se repete no terceiro capítulo (Lorena), no quarto (Ana Clara) e no quinto (Lorena, novamente), enquanto a ação, sem que pareça acontecer nada, vai avançando, Lorena na direção da imponderabilidade, Ana Clara da impossibilidade, ambas na insustentabilidade.

O sexto capítulo rompe com o quadro de diversas maneiras: Lião ocupa a cena, ao mesmo tempo tudo é mais objetivo, sem as ruminações, sem o roque-roque do pensamento recorrente e obsessivo. São ações, são projetos, estamos a princípio num escritório de militância política, depois há a notícia da libertação de Miguel, o amante e a necessária partida para a Argélia (gozado: o que pareceria a princípio datado, essa história da ação revolucionária, é o que mais dá sangue e vida a esse romance, apesar do charme dos outros lados do triângulo, e foi essa justamente a maior surpresa da minha releitura, quando na minha memória afetiva a personagem de Lião era a que menos contava, e para mim, agora, ela é que dá o significado mais pleno ao texto). Nesse sexto capítulo, há também uma conversa-chave entre Lião e a madre responsável pelo pensionato.

No sétimo capítulo, pela primeira vez há uma divisão do foco narrativo, entre Lorena e Lião. O oitavo, que é o mais dramático e um ponto alto da prosa de Lygia, temos o clímax da participação de Ana Clara, perdida na cidade, na noite e na vida (os perigos sobre os quais a madre acautelava Lião, as ciladas que gazelas sofrem no desenho do tapete da casa da mãe de Lorena?). A impossibilidade encenada não mais na modorra de uma sesta/morgação, mas na própria ação. O nono capítulo volta a Lorena, e a sua imponderabilidade é colocada em xeque, não mais em fantasias e devaneios, mas no concreto (a cena com o rapaz que é a fim dela, Guga) e é quando Lião lhe dá a notícia da sua viagem (o mundo em torno da concha vai rachando-a).

No décimo capítulo ocorre a já citada visita de Lião à casa da mãe de Lorena (simétrica de certa forma ao seu diálogo com a madre no sexto capítulo). No décimo-primeiro, Ana Clara chega destroçada no quarto de Lorena, que lhe dá um banho (o mundo concha tentando lavar os pecados do mundo real, também uma aspiração à tabula rasa por vias mais subreptícias) e depois vai ao quarto de Lião, que está preparando sua partida. Ao voltar para seu quarto, Lorena descobre que Ana Clara está morta e chama a amiga. É curioso que nesse capítulo que “reúne” as três não há (como no romance inteiro) encontro real entre Ana Clara e Lião.

E no último capítulo, eis as três pela noite paulista: Lião e Lorena “desovando” o corpo de Ana Clara, de forma a que não haja complicações no pensionato. O cuidado de Lorena com a morta, salvando as aparências, deixando-a linda. Os caminhos que se bifurcam: Lião indo para a Argélia, o futuro em aberto, Lorena voltando para a casa da mãe, para a concha-mor, para o desenho do tapete. Embora haja alguma esperança. Porque senão, pelo que vimos no posterior As horas nuas (1989) sabemos no que dá essas mulheres em apartamentos-conchas, o enlouquecimento e desvario progressivo, essa preocupação em salvar as aparências, e nada acabando, nunca…

Houve portanto uma troca de posições entre Ana Clara e Lião, em termos de estratégia narrativa e Lorena continuou sendo, grosso modo, a representante do mundo asfixiante e estagnado, mundo ao qual Ana Clara aspira e o qual Lião rejeita, por isso a mais frágil das três meninas é de certa maneira o fio condutor de toda a trama.

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1 Comentário »

  1. lindo .

    Comentário por niltonresende — 05/08/2012 @ 12:28 | Responder


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