MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

16/04/2013

A gota de veneno de Thérèse Desqueyroux no ramerrão da província


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“Outros ficcionistas, como outros leitores, sorrirão desse drama. Se Mauriac não jogasse tanto com a presença (invisível, mas palpitante à distância, em seus livros) de um poder divino, tais livros seriam simplesmente freudianos. Elimine-se esse dado oculto e… surgirão os complexos, os recalques, as transferências, o conteúdo onírico e toda a nomenclatura popularizada nos últimos anos. De acordo. Mas é preciso contar com a personagem secreta de Mauriac, que dela não prescinde. Seria muito bom que os romancistas fossem romancistas e os poetas, puramente poetas, mas a verdade é que eles se comunicam, através de inumeráveis condutos com as correntes morais, políticas e filosóficas que banham o mundo, e que sem essa comunicação não existiria mesmo a matéria que produzem, isto é, a literatura.
     Para compreender e estimar Mauriac, portanto, é preciso aceitá-lo como tal como é, romancista obcecado com o problema da culpa e do resgate. Não o problema da consciência moral, pura e simples, comum ao crente, ao cético e ao ateu, ou o da responsabilidade jurídica, forma civil dessa consciência. Sua fraqueza, como sua força, vêm daí. É pegá-lo ou deixá-lo…”  (Carlos Drummond de Andrade)

“Pensando na noite que se seguiu, Thérèse murmura: Foi horrível, mas corrige-se: Não…não foi tão horrível assim. Sofreu muito durante a viagem aos lagos italianos? Não, não; ela se aplicava a este jogo: não se trair. Um noivo engana-se facilmente; mas um marido! Qualquer pessoa sabe dizer palavras falsas; as mentiras do corpo exigem outra ciência. Imitar o desejo, a alegria, o delicioso cansaço, isso não é dado a todos. Thérèse soube dobrar o corpo a esses fingimentos e tirava disso um amargo prazer. Esse mundo desconhecido de sensações em que um homem a obrigava a penetrar, sua imaginação a ajudava a conceber que talvez houvesse aí, para ela também, uma felicidade possível—mas que felicidade? Como diante de uma paisagem mergulhada na chuva nós nos representamos o que seria ela debaixo do sol, assim Thérèse descobriu a voluptuosidade.” (François Mauriac)

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 16 de abril de 2013)

“… obedecera a uma lei profunda, inexorável; não destruíra aquela família, ela é que seria destruída; tinham razão em considerá-la um monstro, mas também ela os julgava monstruosos.”

Uma esposa que se sente definhando numa morte em vida na província, cercada de gente de mentalidade tacanha e retrógrada, desesperada por constatar que, grávida, é alvo de atenções apenas por ser o receptáculo da “continuação da raça”, um dia percebe casualmente o marido (por quem alimenta desprezo e horror), distraído por uma crise na região, dobrar a dose recomendada de um remédio tomado diariamente. O grão de uma tentação germina e vai se tornando irresistível: envenenar aquele ser embrutecido, aquele estorvo.

Quando começa Thérèse Desqueyroux (1927), cuja mais recente versão cinematográfica  encontra-se em cartaz, a protagonista volta ao seu lar para enfrentar as conseqüências do seu ato perante o marido, após ter sido inocentada da acusação de tentativa de assassinato. Inculpada segundo a justiça oficial, será punida de uma forma exemplar, condenada a um isolamento ainda maior do que antes.

   François Mauriac (1885-1970), portanto, equaciona as tentativas tresloucadas e erráticas de Thérèse com a assustadora eficácia das sanções mesquinhas, calculadas, que não ferem as aparências e o decoro geral, mas que resultam igualmente monstruosas. O ponto alto, e um momento particularmente terrível (totalmente diluído no filme), de Thérèse Desqueyroux é o relato da degradação física e da destruição espiritual da envenenadora (cuja passagem faz com que as mães recolham os filhos, que ninguém responda aos seus cumprimentos, e que ela tenha de se esgueirar pelos caminhos). Sua situação é resumida pela criada que, solidária ao agravado patrão, a serve de forma a lhe deixar o ressaibo de condenada à prisão vigiada por uma carcereira: “Ela não sai mais da cama, deixa a sua conserva e o seu pão. Mas eu te juro que ela esvazia a sua garrafinha. Quanto a gente der a essa puta, tanto ela beberá. E além disso, queima os lençóis com cigarro (…) É ou não uma desgraça? Lençóis que foram feitos para a casa! Vá esperando que eu os mude todos os dias! Resultado do regime: ao ser vista novamente pela família, para uma ocasião “de conveniência”, ela está “exangue, descarnada”, o rosto como que roído, irreversivelmente.

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É por Mauriac, um daqueles formidáveis autores católicos (ao mesmo tempo, muito regionalistas, com livros de ambientação inconfundível) franceses, do naipe de um Georges Bernanos (Sob o sol de Satã) e um Julien Green (Leviatã), os quais exerceram grande influência aqui no Brasil no século passado, compor tão cruelmente essa mistura de páthos e jaulas existenciais intoleráveis, que é quase impensável imaginar que um diretor digamos “recatado”, para não dizer limitado, como Claude Miller, e uma atriz tão fraquinha quanto Audrey Tautou (ainda mais num papel que já foi vivido, em outra versão, pela grande Emanuelle Rivas), possam transpor esses extremos para as telas com algum resultado longinquamente memorável.

Mas não é de saída que o texto impressiona. Nos primeiros capítulos, ele fica no limite de aborrecer o leitor com o minucioso exame de consciência de Thérèse no longo regresso, do tribunal à sua casa, que é filtrado da forma mais intrometida possível pelo narrador. Os mecanismos mentais da personagem nos parecem tão cartesianos, tão concatenadinhos, e vazados em linguagem tão pura e escorreita, que parece que ele está arremedando o teatro clássico francês, um tom à Racine.

É a vida infernal de Thérèse como condenada pela família do marido que faz o romance alçar à condição de obra-prima. Mas, passados 86 anos, a história toda ainda é tão forte que, mesmo quando sentimos que o autor interfere demais nas reminiscências e reflexões da desventurada heroína, de forma até anacrônica, o “drama” apresentado por ele impacta o leitor. Quantos enredos atuais podem se orgulhar disso?

Ajuda muito Thérèse Desqueyroux ter sido traduzido por um inspirado Carlos Drummond de Andrade (nos anos 1940, e lançado originalmente com o título nacional de Uma gota de veneno), de uma forma tão marcante, tão indelével, que às vezes fica difícil imaginar esse grande momento da produção de Mauriac (que teria uma continuação, O fim da noite, em 1935), junto com O deserto do amor (1925) em outra versão em nossa língua.

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