MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

21/02/2013

Leituras em espelho: Dois Jonas e suas formidáveis baleias: Vargas Llosa e OS MISERÁVEIS, Paulo Rónai e A COMÉDIA HUMANA


miseráveiscomédia humana

I

“O cristianismo conduz a poesia à verdade. Como ele, a musa moderna verá as coisas  com um olhar mais elevado e mais amplo. Sentirá que tudo na criação não é humanamente ´belo´, que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz. Perguntar-se-á se a razão estreita e relativa do artista deve ter ganho de causa sobre a razão infinita, absoluta, do criador; se cabe ao homem retificar Deus; se uma natureza mutilada será mais bela; se a arte possui o direito de desdobrar, por assim dizer, o homem, a vida, a criação; se cada coisa andará melhor, quando lhe for tirado o músculo e a mola; se, enfim, o meio de ser harmonioso é ser incompleto. É então que, com olhar fixo nos acontecimentos ao mesmo tempo risíveis e formidáveis, e sob a influência deste espírito de melancolia cristã e de crítica filosófica que notávamos há pouco, a poesia dará um grande passo, um passo decisivo, um passo que, semelhante ao abalo de um terremoto, mudará toda a face do mundo intelectual. Ela se porá a fazer como a natureza, a misturar nas suas criações, sem entretanto confundi-las, a sombra com a luz, o grotesco com o sublime, em outros termos, o corpo com a alma, o animal com o espírito, pois o ponto de partida da religião é sempre o ponto de partida da poesia. Tudo é perfeitamente coeso (…) E aqui, permitam-nos insistir, pois acabamos de indicar o traço característico, a diferença fundamental que separa, em nossa opinião, a arte moderna da arte antiga, a forma atual da forma extinta, ou, para nos servirmos de palavras mais vagas, porém, mais acreditadas, a literatura romântica da literatura clássica (…)como meio de contraste, o grotesco é, segundo nossa opinião, a mais rica fonte que a natureza pode abrir à arte. Rubens assim o compreendia, sem dúvida, quando se comprazia em misturar com o desenrolar de pompas reais, com coroações, com brilhantes cerimônias, alguma hedionda figura de anão da corte. Esta beleza universal que a Antiguidade derramava solenemente sobre tudo não deixava de ser monótona; a mesma impressão, sempre repetida, pode fatigar com o tempo. O sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste, e tem-se necessidade de descansar de tudo, até do belo…”

        (Victor Hugo, Prefácio de Cromwell)

tentação

Eu não sei quantas pessoas ainda têm coragem ou disposição de encarar o tempo exigido pela leitura de Os Miseráveis (1862), embora seja uma experiência altamente gratificante. O certo é que seu enredo folhetinesco e mirabolante continua exercendo apelo enorme sobre o público, como se pode constatar pelas periódicas e já incontáveis transposições para outros veículos. O mais eloquente símbolo do seu sucesso é a permanência em cartaz do musical que originou o filme de Tom Hooper (aquele mesmo do medíocre O Discurso do Rei), com Hugh Jackman e o grande Russell Crowe nos papéis centrais, Jean Valjean e Javert (contudo, a figura mais badalada da produção é Anne Hathaway, no papel da desventurada Fantine).

Fascinado pela obra-prima de Victor Hugo, e pelo próprio universo “titânico” do gênio literário francês, Mario Vargas Llosa mergulhou por dois anos em Os Miseráveis e na sua fortuna crítica[1].

O resultado foi um curso em Oxford, em 2004, e um ensaio, A Tentação do Impossível (La tentación de lo imposible), publicado no mesmo ano, muito superior às mais recentes produções romanescas do peruano (Travessuras da Menina Má; O Sonho do Celta), o qual sempre foi excelente crítico literário: A Orgia Perpétua e A Verdade das Mentiras estão entre os títulos vargasllosianos obrigatórios[2].

Ele toma como mote um trecho de Alphonse de Lamartine (1790-1869), em que este condena seu contemporâneo porque “A mais homicida e mais terrível das paixões que se pode infundir às massas é a paixão do impossível”. Pois Hugo, desdenhando das leis humanas, da justiça dos homens, desmistificava em seu portentoso livro todo o sistema judiciário, quase que antecipando Kafka, quando este —em O Processo— decreta que “A mentira se converte em ordem universal”:

“A acusação de Lamartine a Victor Hugo lembra uma afirmação que encontrei num livro de Eric Hobsbawm [Rebeldes primitivos], segundo a qual o que os príncipes alemães mais temiam em seus súditos era o entusiasmo, porque este, a seu ver, era semente de agitação, uma fonte de desordem. Lamartine e os príncipes alemães tinham razão, é claro. Se o objetivo proposto é manter a vida social dentro dos cânones escritos, imersa numa ordem imutável como a astral ou a do trajeto dos trens, o entusiasmo e a alucinação ou miragem transitórios que uma ficção bem-sucedida produz é um inimigo potencial, um imprevisto que pode desorganizar a vida, espalhando a dúvida e a discórdia e estimulando o espírito crítico, dissolvente, capaz de provocar múltiplas fraturas na arquitetura social.”

Kafka é um autor moderno. Llosa nos mostra quão antiquado (uma das razões do seu encanto perene, diga-se de passagem) é Os Miseráveis como romance, uma vez que o narrador (“o divino estenógrafo”)  ali usurpa o papel de Deus, interferindo na ação, fazendo comentários, digressões autobiográficas, explicando para o leitor nos menores detalhes suas intenções e as dos personagens, ou seja, uma Voz asfixiante e autoritária. Não fosse Hugo um misto de escritor, ideólogo, presença carismática e profeta, uma daquelas figuras oitocentistas “maiores que a vida”, como Tolstói e Walt Whitman.

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Essa desmesura do narrador/autor se reflete nos seus protagonistas, “monstros pontilhosos[3], todos levando ao extremo (não à toa o autor de O Corcunda de Notre-Dame propôs o Sublime e o Grotesco como movimentos pendulares da criação artística) suas características. O exemplo mais acabado é o policial Javert, encarnação inumana do apego ao dever, perseguindo por décadas um prisioneiro evadido que roubara um pedaço de pão! O próprio herói, Jean Valjean, chega às raias do sobre-humano, com suas ações de auto-sacrifício (além da sua força física descomunal), que sempre desbaratam a estabilidade que por vezes consegue na sua longa trajetória de perseguido.

Sim, eles nos parecem monstruosos e não raro foram acusados de inverossímeis por críticos que não perceberam que esses exageros descabelados de Os Miseráveis (que o tornam o maior dos romances românticos, a meu ver) apontam para uma dimensão alegórica. Ainda que com ambientação histórica definida (com alguns anos-chaves:  1817 e 1832), estamos diante de uma alegoria sobre a luta do Bem e o Mal, sobre o Progresso e a presença de Deus nos caminhos tortos da humanidade; e mais ainda, esses exageros apontam para uma ambição inerente ao gênero, de ser “total”, de apresentar uma realidade ficcional autônoma, uma realidade paralela. “Romance: mundo imerso no mundo”, dizia Osman Lins (eu gosto muito de citar essa frase), e Os Miseráveis é um dos exemplos consumados dessa vocação, a qual efetivamente foi pedra-de-toque do próprio Llosa, ao criar seus monumentais Conversa na Catedral e A Guerra do Fim do Mundo  (este último, inclusive, nascido a partir da leitura de um livro  marcadamente ciclópico, à Victor Hugo: Os Sertões). Ele sempre deixou claro sua dívida com relação aos romances “totalizantes” (como Moby Dick ou Guerra e Paz).

Hugo chegou a afirmar que seu romance era “uma espécie de ensaio sobre o infinito”; já Vargas Llosa o chama de “maravilhosa irrealização da realidade”, que no entanto parece mais real que a vida.

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Por isso, não deixa de ser adequado, digam o que quiserem os críticos do resultado fianl, que uma obra com essas características tenha sua melhor tradução atual na altissonância e na teatralidade mais assumida dos recitativos de um musical (o que estou colocando como princípio que não verificarei: não suporto musicais, com as exceções de praxe, e para mim as piores horas ligadas ao cinema de que me lembro são as que perdi com os horrorosos Mary Poppins e My fair lady):

“Uma idêntica teatralidade transforma a batalha de Waterloo de Os Miseráveis num espetáculo sublime em que os vencedores e vencidos interpretam soberbamente os papéis atribuídos a eles por um Ser Supremo a quem o Imperador dos Frances começava a estorvar (…) Deus decidira o resultado do combate de antemão. Pois bem, se o fim da batalha já está escrito antes do conflito e das cargas e assaltos, do tiroteio ensurdecedor e do chiado dos sabres, o que resta a esses combatentes incapazes de mudar o rumo daquela partida de xadrez com movimentos inflexivelmente programados da qual são peões obedientes? Restam o gesto, a destreza formal, a retórica, a elegância e a beleza com que interpretam seus papéis, enriquecendo-o com petulâncias românticas como Ney ao pedir em altos brados que todos os projéteis da artilharia inglesa fossem se alojar no seu ventre ou o enfeando como o general Blücher ao ordenar a matança dos prisioneiros. Na maravilhosa irrealização da realidade, ou ficcionalização da história, que é o capítulo sobre Waterloo… o divino estenógrafo pode afirmar por isso, com toda legitimidade, que o verdadeiro vencedor de Waterloo foi Cambronne.

   Na realidade fictícia, as revoluções não são uma imperfeita, caótica, convulsa, ambígua criação coletiva de consequências imprevisíveis, mas um fenômeno inelutável e impessoal que vai além do social, tanto quanto um terremoto ou um ciclone (…) Para entender o que é uma revolução, segundo o narrador de Os Miseráveis, é preciso trocar-lhe o nome—e nesse mundo de identidades volúveis, trocar de nome significa trocar de papel ou função—e chamá-la de Progresso. E para se entender o que significa essa palavra também é preciso trocar seu nome por Amanhã, ou seja, o futuro…. Há um Destino, traçado desde que os seres humanos existem, que dotou a sociedade de um dinamismo que, ainda que tenha que passar por provas agônicas, sistematicamente a impulsiona rumo a formas superiores de vida material, cultural e moral…”

Afinal, já disse outro autor oceânico que somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos.

(a resenha acima, sem as notas de rodapé, foi publicada originalmente em A TRIBUNA de santos, em12 de fevereiro de 2013)

editora globo-comédia humana

II

“Não transforma a sociedade o homem, segundo os meios em que se desenvolve sua ação, em outros tantos indivíduos diferentes, à semelhança das variedades em zoologia? As diferenças entre um soldado, um operário, um administrador, um advogado, um desocupado, um sábio, um homem de Estado, um comerciante, um marujo, um poeta, um mendigo, um padre, são, conquanto mais difíceis de apreender,  tão consideráveis como as que há entre o lobo, o leão, o asno, o corvo, o tubarão, o lobo-marinho, a ovelha etc. Existiram, pois, e existirão sempre, espécies sociais como há espécies zoológicas. Se Buffon fez um trabalho magnífico  tentando apresentar num livro o conjunto da zoologia, não seria desejável uma obra desse gênero com relação à sociedade? Mas a natureza estabeleceu para as variedades animais limites dentro dos quais a sociedade não podia permanecer. Quando Buffon descrevia o leão, em poucas palavras nos apresentava a leoa, ao passo que na sociedade a mulher nem sempre se limita a ser a fêmea do macho. Pode haver, num casal, dois seres perfeitamente dessemelhantes. A mulher de um negociante é, muitas vezes, digna de ser a de um príncipe, e muitas vezes a de um príncipe não vale a de um artista. O estado social tem acasos que a natureza não se permite, porque ele é a natureza mais a sociedade. A descrição dessas espécies sociais era, pois, pelo menos o dobro das espécies animais, não se considerando senão os dois sexos. Enfim, entre os animais há poucos dramas, entre eles não se gera a confusão, eles se atiram uns sobre os outros, e eis tudo. Os homens, é verdade, também se atiram uns sobre os outros, mas o grau de inteligência que os diferencia torna a luta muito mais complicada.  Se alguns sábios não admitem que a animalidade se transvaza na humanidade por uma imensa corrente de vida, pode entretanto o merceeiro tornar-se par-de-França e o nobre descer por vezes ao mais baixo nível social (…) Assim, pois, a obra a empreender devia ter uma tríplice forma: os homens, as mulheres e as coisas, isto é, as pessoas e a representação material que elas dão de seu pensamento; em resumo, o homem e a vida (…) Como, porém, tornar interessante o drama de três ou quatro mil personagens que a sociedade apresenta? Como agradar, ao mesmo tempo, ao poeta, ao filósofo e às massas que querem a poesia e a filosofia sob imagens empolgantes?”

                  (Honoré de Balzac, Préfácio à Comédia Humana)

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A 4ª. edição de Balzac e A Comédia Humana[4], de Paulo Rónai (1907-1992) reaparece na esteira do relançamento dos 17 volumes de traduções da obra balzaquiana que ele coordenou nos anos 1940-50. Há todo um charme recôndito no pequeno volume, onde o húngaro, que viveu no Brasil boa parte da sua existência, destila sua íntima convivência com os textos do autor de A Comédia Humana e nos faz relevar os aspectos datados, até mesmo superados, das suas análises, principalmente as literárias[5], pois se o texto de Rónai é um manancial de informações valiosas e de conhecimento de primeira mão,por vezes soa esquemático demais, meio professoral e “quadradinho” (por exemplo, nele se fala em  “qualidades típicas do espírito francês”, em “ilustre gentil-homem”—e ele não está falando de um personagem de Balzac, não, mas de um estudioso de sua obra!; há também afirmações genéricas do tipo: “A Comédia Humana presta-se a todas as interpretações”).

Como atualmente há uma falta constrangedora de textos que tenham clareza didática e que ajudem o leitor comum a atravessar certas obras-selvas, é provável que esse defeito evidenciado pelo transcorrer do tempo venha a ser tomado como uma qualidade (também não se pode esquecer que os textos surgiram tendo como base conferências nas quais Rónai se esforçava em aproximar a obra balzaquiana do leitor brasileiro da época).

A primeira seção, O mundo de Balzac enfatiza a vitalidade e permanência da Comédia naqueles meados do século XX, em pleno pós-Segunda Guerra; e enfatiza também o que Rónai toma (a meu ver, discutivelmente) como o maior achado do autor francês: “Foi ele quem primeiro teve a ideia genial de basear a literatura de ficção em estudos e pesquisas, aplicando à sociedade de seu próprio tempo o método de documentação com que Walter Scott, em seus romances históricos, transfigurava o passado”.

Mais aceitável é essa outra consideração: “A volta sistemática das mesmas personagens dentro de diversos romances era, em verdade, invenção originalíssima e de grande alcance”, mas a sequência é duvidosa já é duvidosa: Balzac pretendeu “eliminar a maior imperfeição inerente ao gênero, qual seja, a incapacidade de dar uma ilusão completa da realidade” Que Balzac achasse que havia essa “imperfeição inerente ao gênero”, tudo bem. Seu crítico nunca poderia encampar essa visão basicamente distorcida do alcance de um romance (e quem leu a parte dedicada ao estudo que Vargas Llosa fez de Os Miseráveis compreenderá minhas reservas com relação a afirmações desse tipo).

Como profundo conhecedor até da genética textual balzaquiana, o organizador da Comédia Humana brasileira permite que acompanhemos a reescritura atordoante que foi necessária para a unificação da obra, após a decisão do seu criador de ligar entre si os relatos mais diversos (Rónai também discute a falta de “uma ordem cronológica de leitura”, “o que se poderia julgar uma fraqueza de sua obra”, no sentido da comodidade dos leitores!!??; felizmente, reconhece que Balzac não levou a cabo tal ordenação intencionalmente, e que essa “lacuna” obedece a um critério artístico superior do que a mera “comodidade dos leitores”): “no vasto edifício de A Comédia Humana quase tudo tem significação, até as irregularidades, as assimetrias, as aparentes inconsequências, todas elas subordinadas ao fim principal, que consiste em dar uma imagem tão completa e fiel quanto possível da complexa realidade moderna.” Só gostaria que o tom não fosse quase de justificação.

O mais da seção se preocupa em elencar alguns “enigmas” na arquitetura da vasta construção e mencionar alguns de seus investigadores, que mais do que balzaquianos parecem sair do mundo do Flaubert de Bouvard e Pécuchet [embora algumas vezes eu mesmo me sinta saído desse mundo].

Não se pode esquecer que Rónai também analisa um romance não tão conhecido como Ilusões Perdidas, Eugénie Grandet ou Pai Goriot, e que faz parte do primeiro volume: Memórias de duas jovens esposas, para exemplificar o método de trabalho balzaquiano, aquele vezo obsessivo de estar sempre anunciando projetos em sua Correspondência, e as suas sucessivas transformações. É a parte mais interessante de O mundo de Balzac.

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Gosto muito da segunda seção, O Pai Goriot dentro da literatura universal, talvez pelo tanto que goste do romance, mesmo que ele comece com um clichê de doer (por ser clichê e pelo preconceito social): “A costureirinha que, mal lidas vinte páginas, depõe bocejando A Educação Sentimental verte abundantes lágrimas no fim de um romance de Delly, velozmente devorado”.

Mas o fato é que ele expõe de forma cabal a importância estratégica da história de Rastignac para se compreender as leis psicológicas e sociais que regem o mundo da Comédia. É seu livro-síntese, sua chave.

E, ademais, ele explora a questão do leitmotiv “matar o mandarim”, fazendo uma genealogia das obras que trataram o assunto, de uma forma erudita, porém nada preciosista ou acadêmica, uma aula modelar de historicismo literário, que roça a literatura comparada de uma forma muito saborosa. A meu ver, é o ponto alto de Balzac e A Comédia Humana.

Apesar de achar um pouco ultrapassada e rígida as distinções entre “romances” e “contos longos” de A Comédia Humana, o interesse maior de Balzac contista, a terceira seção, está na útil distinção—que só um especialista na obra completa poderia fazer—entre as duas classificações que se pode fazer desses textos mais curtos, os independentes e os “explicativos” (“isto é, que esclarecem outras obras ou por estas se esclarecem”). E nos dá a pista desses últimos, num belo roteiro para quem quer se aventurar pela leitura do conjunto, pois são os textos mais difíceis de avaliar. E é bom lembrar que o primeiro volume se inicia com dois desses “contos”, e aliás admiráveis: Ao Chat-qui-pelote & O baile de Sceaux (concordo com Rónai, principalmente com relação ao segundo, que os finais dessa linha de textos insertos na Comédia são meio abruptos e apressados).

Acho que essa seção é uma grande contribuição ao conhecimento didático, por assim dizer, da obra de Balzac, independentemente da discussão de gêneros literários.

Não gosto do tom justificativo que retorna em O estilo de Balzac, a quarta seção: será que um gênio desses precisa de escusas? Pois é, dizia-se (e Proust o afirmou muitas vezes) que Balzac escrevia mal. E daí? Isso não significa mais nada. Na verdade, Rónai chegará à conclusão óbvia: “O nosso autor, como os grandes escritores antigos, exige o sacrifício de certos hábitos de leitura, compensando-a com um rico, intenso conteúdo humano, sempre atual”.

Gosto é das amostras do Balzac anterior às obras da Comédia, que perpetrou trechos como este:”A condessa acorreu com a velocidade de um milhafre”. E como amostra de que a prosa de ficção é muito mais do que um estilo totalmente trabalhado, ele nos dá trechos hilários que persistem em textos do grande ciclo, como Modesta Mignon, onde uma moça está “com o nariz aberto ao perfume da flor azul do ideal”.

E gosto é da técnica utilizada por Rónai de mostrar como Balzac operava (por acréscimos), através de preciosas análises de trechos (que considero outro ponto alto do livro). Ele também acaba nos mostrando que o autor de La rabouilleuse é, como Victor Hugo, um praticante do narrador asfixiante: “Desde o início, ele faz sentir que já sabe toda a história e está apenas procurando a melhor maneira para comunicá-la ao leitor”. Como exemplo, justamente um trecho daquele romance, traduzido por aqui como Um conchego de solteirão:

“Jean-Jacques Rouget, a quem o pai acabara controlando com severidade ao reconhecer-lhe a estupidez, ficou solteiro por graves razões, cuja explicação constitui parte importante desta história. Seu celibato foi em parte causado por culpa do doutor, como se verá mais tarde. Agora é necessário examinar os efeitos da vingança exercida pelo pai na pessoa de uma filha que não considerava sua e que, no entanto, podem acreditá-lo, lhe pertencia legitimamente.”

   Outro ponto importante levantado por Rónai nessa seção é a terminologia inovadora utilizada por Balzac, e tomada de empréstimo ás ciências naturais, muito em voga àquela altura, o que sublinha—até estilisticamente—o lado enciclopédico que o romance assumiria como uma de suas vocações naturais. Mas para o seu estudioso há o reverso: “O estilo de Balzac falando em seu próprio nome é justamente aquele em que se censura o maior número de falhas: a heterogeneidade, as pretensões a cientista e historiador, a banalidade ou a incongruências das imagens, a exuberância, às vezes caótica”. Será que podemos, hoje, subscrever uma passagem dessas (que, diga-se de passagem, reverbera em outras, do tipo: “Muito provavelmente o melhor estilo é aquele que não se percebe”)?

De qualquer forma, no final toda esse pró-e-contra se mostra estéril e irrisório justamente porque Rónai dá um golpe baixo: transcreve uma imensa passagem (que ocupa quase três páginas) de O Primo Pons, que liquida a discussão, de tão bela e expressiva que é.

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Quanto à quinta seção, Paris, personagem de Balzac, é prejudicada por um certo tom moralista convencional (“A Paris de Balzac, para dizer a verdade, pouco tem de idílico. O seu brilho lembra o da chama que atrai os insetos noturnos para queimá-los. Se os insetes pudessem refletir! Se olhassem um instante sequer para o chão, cheio de asas queimadas, de corpos carbonizados de seus semelhantes! Eles, porém, só sabem olhar para a luz, só têm uma vontade, chegarem-se a ela o mais possível, aquecerem-se a ela”, dá para acreditar que na seção anterior ele analisou com precisão as pérolas de breguice do estilo do autor francês?) que impregna o levantamento (numérico, inclusive) da presença da metrópole na Comédia. Mesmo assim, ocorre um fenômeno bacana sobre o qual seria um pecado passar em branco: de repente, Rónai se investe de um espírito de prosador à Balzac, veja-se:

“Se Londres a igualava no número dos habitantes e a superava como empório comercial, ficava-lhe atrás no colorido, nas atrações, no movimento de estrangeiros. Roma, centro perene do catolicismo, ainda não era capital da Itália e, na atmosfera de suas ruas, ao cheiro do incenso misturava-se o mofo das glórias passadas. Madri definhava uma lenta decadência, Berlim era apenas o centro de um pequeno estado prussiano, a capital dos czares ficava longe, atrás do nevoeiro, no meio do deserto. Viena, sim, que reluzia, abrilhantada pela auréola de uma esplêndida corte, ostentando uma beleza alegre e harmoniosa; mas dava a impressão artística de uma joia sem comunicar o espanto de uma metrópole gigantesca…”

pele de onagro

Além da história paradigmática de Rastignac, há outra fábula exemplar da trituração de ideais e pessoas executada em (e por) Paris: a do primo Pons e de seu amigo Schmucke, humilhados e espoliados, e que são o epítome do seguinte axioma: “Frequentemente escolhe uma das figuras mais inexpressivas, mais anódinas, que parecem levar a vida mais monótona, que são a negação de todo o romanesco, uma personagem totalmente desinteressante—como se tivesse apostado demonstrar-nos a existência de paixões e dramas sob qualquer disfarce”

   Até essa altura temos cinco seções sólidas e, no mínimo, úteis, com pequenos senões ou detalhes que nos soam hoje datados. Há um epílogo bonito, também, com forte sabor de reminiscência da infância e da juventude, À maneira de epílogo: adeus a Balzac, em que ele historia suas relações pessoais com o fenomenal criador da Comédia Humana de uma maneira que parece desapaixonada, mas só na superfície, pois é de tanto que ama Balzac e sua obra e de tanto que a conhece que ficou esse ar de coisa já tão despojada e simples que nem parece ser resultado de anos de leituras, pesquisas, estudos e reflexões. Parece uma coisa dada (inteligentemente, a nova edição complementou-a e lhe deu uma nova profundidade com a inclusão do texto sobre a história da edição brasileira da Comédia Humana).

Todavia, é meio indefensável a sexta parte, O Brasil na obra e na vida de Balzac, a não ser como curiosidade. Novamente, registre-se o assombroso conhecimento de firulas e detalhes do conjunto de 89 romances e contos, mas é muito tiro para caçar moscas e formigas, para nos dar as parcas referências ao nosso país, e um único personagem. Lendo, tive a mesma aflição e sensação de inutilidade de quando li alguns dos ensaios de Cultura & Imperialismo, de Edward W. Said, aqueles em que queria, por exemplo, vincular as existências das heroínas de Jane Austen com o sofrimento dos jamaicanos. São páginas e páginas, em Rónai e Said (com a crucial diferença que, no segundo, se efetua–ou se tenta efetuar– uma desconstrução ideológica muito consciente), a  nos escancarar um grande vazio. Só porque Balzac, numa carta, quando está frustrado com o fracasso de sua carreira, aventa a possibilidade de fugir para o Brasil, insinuam-se mundos e fundos.

O que ela registra, talvez, é uma possível gratidão do autor húngaro pelo país que o acolheu.

Felizmente, assim como o efeito conjunto de A Comédia Humana absorve, sem maiores problemas, a moça com o nariz aberto ao perfume da flor azul do ideal, Balzac e A Comédia Humana absorve essa dispensável seção. Ao comentar (no texto em apêndice) a presença brasileira de  (e não a presença do Brasil em) Balzac, ele diz: “E talvez me seja permitido incluir entre os subprodutos dessa renascença balzaquiana mais dois livros de minha autoria: Balzac e A Comédia Humana e Um Romance de Balzac: A Pele de Onagro…” Modéstia pura: longe de ser apenas um subproduto, seu livro  tornou-se um pequeno clássico que resiste há 66 anos, tempo incomensurável para qualquer estudo crítico.

(o texto acima foi escrito especialmente para o blog, em 20-21 de fevereiro de 2013)

paulo rónai


[1] Todavia, é uma leitura de toda a vida, e de certa forma uma reminiscência da adolescência. O ensaio começa assim: “Naquele ano de 1950, o inverno, no internato do Colégio Militar Leoncio Prado, de Lima, era úmido e cinza, a rotina embrutecedora e a vida um tanto infeliz. As aventuras de Jean Valjean, a obstinação de sabujo de Javert, a simpatia de Gavroche e o heroísmo de Enjolras apagavam a hostilidade do mundo e transformavam a depressão em entusiasmo nas horas de leitura, roubadas às aulas e à instrução militar, que me transportavam para um universo de extremos incandescentes na desgraça, no amor, na coragem, na alegria, na vileza. A revolução, a santidade, o sacrifício, o cárcere, o crime, homens super-homens, virgens ou putas, santas ou perversas, uma humanidade atenta ao gesto, à eufonia, à metáfora. Fugir para lá era um grande refúgio: a vida esplendia da ficção me dava forças para suportar a vida verdadeira. Mas a riqueza da literatura também fazia a realidade real ficar mais pobre (…) Se estamos há tantos séculos escrevendo e lendo ficções, algum motivo deve haver. Eu sei que naquele inverno de 1950, com uniforme, garoa e neblina, no alto do escarpado de La Perla, graças a Os Miseráveis a vida foi muito menos miserável para mim.”

Utilizo aqui a tradução de Paulina Wacht & Ari Roitman.

[2] Foi a leitura do primeiro, apaixonante, que me motivou a ler os romances do próprio Llosa. Tive a sorte de começar pelo melhor de todos, Conversa na Catedral.

[3] Deve-se lamentar a falta de atenção dos tradutores de A Tentação do Impossível para as traduções que aclimataram o texto de Hugo no Brasil. Eles perderam uma ótima oportunidade para defender o uso de “monstros pontilhosos”, ao invés de “monstros melindrosos”, como aparece nas duas traduções que li e que acredito serem as mais prestigiosas no Brasil: a de Carlos dos Santos (publicada pelo Círculo do Livro) e a de Frederico Ozanam Pessoa de Barros (esta eu li, numa curiosa sincronicidade, justamente no ano da publicação de La Tentación de lo Imposible, 2004), atualmente editada pela CosacNaify. O termo “melindrosos” talvez numa primeira sacada parece mais restrito a modulações psicológicas, enquanto “pontilhosos” já nos remete a uma convivência de sombra e luz, mais estética. Mesmo assim, “melindrosos” é o termo com que o leitor brasileiro do romance convive e considero o descaso dos tradutores digno de nota.

vida de balzac

[4] Os seis ensaios (e mais um epílogo proustiano) que são o cerne do volume foram publicados em 1947, para acompanhar a monumental edição de A Comédia Humana, então levada a cabo pela editora Globo [o empreendimento foi de 1946 a 1955], para a qual Rónai também escrevera uma biografia sucinta e exemplar de Balzac.

Na edição atual, foi incluído um texto do próprio Rónai, do final dos anos 1980, onde conta a história da lendária edição em 17 volumes.

O volume ainda é enriquecido com índices e listas bibliográficas, funcionando como uma homenagem a Rónai. Nada mais merecido. Permito-me somente observar que A Comédia Humana acaba ocupando um papel coadjuvante na coisa toda.

[5] Curiosamente, numa época em que se crucifica a obra de Monteiro Lobato pelo conteúdo racista (chegando-se a postular uma proibição da circulação escolar de Caçadas de Pedrinho) e que a própria Globo (que publica Balzac e A Comédia Humana através do selo Biblioteca Azul) tratou de alterar o título de O caso dos dez negrinhos  para E não sobrou nenhum, não houve manifestação de espécie alguma, nem ninguém da editora procurou colocar panos quentes, em certas passagens de Rónai que poderiam soar como racistas aos ouvidos de hoje, como na seção intitulada O Brasil na vida e na obra de Balzac, onde aparece um “comércio de pretos”. O que prova que sempre há grita onde há mídia.

balzachugo

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