(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 05 de fevereiro de 2013)
“Como em uma comédia em que se espera que o herói, trazendo a solução, chegue pela direita. E ele deixa os bastidores pela esquerda. Depois, os espectadores voltam para casa surpresos, contentes e um pouco mais astutos. Sentem que a peça foi meio triste no fim. Pois todos esperavam que a ator entrasse pela direita…”
O leitor que já conheça histórias como, por exemplo, a de Anne Frank (ou aquelas contadas em A Lista de Schindler), poderá torcer o nariz ao saber que Comédia em Tom Menor [Komödie in Moll, tradução de Luiz A. de Araújo] é o relato de como Wim e Marie, casal de uma cidadezinha holandesa, esconde num dos quartos de sua casa, por quase um ano, o judeu Nico.
Hans Keilson foi um alemão que viveu a maior parte da sua longa (morreu aos 101 anos, em 2011) existência na Holanda; descoberto como escritor só na década passada, teve a honra tardia de ser chamado de “gênio” pelo The New York Times. Mas o que poderia haver na sua “história de Anne Frank de calças” (experiência realmente vivida por ele) que justificasse tal epíteto, com tantos testemunhos poderosos sobre a tragédia judaica durante o domínio nazista, como os de Primo Levi?
Comédia em Tom Menor se inicia com a morte de Nico, cuja resistência não era das melhores, não sobrevivendo a uma pneumonia. Com habilidade, Keilson alterna as providências para o descarte do corpo, em algum lugar público e não-comprometedor (há toque de recolher), com a rememoração do ano compartilhado pelos três na casa: “Por que, diabos, Nico inventou de morrer? Por que justo ele, que estava escondido em sua casa, resolveu morrer,e morrer de uma morte comum e corrente como se morre em todos os tempos, na guerra ou na paz? Quase lhes havia pregado uma peça com aquela morte….”
O que surpreende, nesse texto publicado originalmente em 1947 (ou seja, ainda bem próximo dos eventos), é a avareza de alusões à situação geral e a absoluta desdramatização do que está sendo contado. O “tom menor” utilizado confere uma veracidade, uma força, que nenhuma descrição grandiloquentemente trágica conseguiria.
Além do mais, temos alguns momentos magistrais: ao arrumar o quarto de Nico, Marie descobre que o morto—o qual costumeiramente dividia tudo com o casal—escondia deles um maço de cigarros caros. Ela se senta e ali e começa a imaginar aquela existência emparedada: “Ele fumava sozinho! Fumava quando estava a sós—quando a solidão o devastava—,quando não agüentava mais (…)Viu-o deitado no divã, os olhos fitos no teto. O braço esquerdo dobrado sob a cabeça no travesseiro, a mão direita na testa. Nada em seu corpo se mexe. Só quando ele inspira, um abalo e um tremor fracionam o fluxo de ar em uma infinidade de pequeninos sopros dilacerados (…) Algo nele se anima… esgueira-se rumo ao armário embutido, vasculha-o até encontrar o maço amarelo. Ainda está cheio. Tira um cigarro, recoloca o resto no esconderijo. E então, sentado na beira do divã, fuma esse cigarro tragada por tragada…”
Só isso, nada mais. E no entanto, tudo. O fato de ser Marie quem vivencia esses momentos a sós de Nico (e depois de ele já estar morto) é que transforma tudo. A incomunicabilidade do sofrimento (e portanto ambivalência das relações) já podia ser detectada em outra passagem: “… sim, eles o ajudavam, sim, isso não valia nada? Sim, significava muito. E não valia nada. Reduzia-o a nada. Era insuportável. Representava o se aniquilamento humano, ainda que—talvez—lhe salvasse a pele.”
Ao longo da leitura fiquei imaginando que interpretações maravilhosas um diretor poderia extrair se o livro fosse adaptado para o teatro ou para o cinema. E de fato, Comédia em Tom Menor vai ficando mais marcadamente teatral depois que Marie e Wim, esses dois personagens que vão muito além de uma ação “boa” (para o leitor, são seres humanos completos), têm de fugir de casa (devido a um erro que pode tê-los comprometido na remoção do corpo) e virar, eles mesmos, pessoas acoitadas.
Já não há mais acontecimentos, só uma longa espera, e aí sim, a identificação com Nico será completa. Pois a qualquer momento, todos nós podemos virar outsiders de um determinado sistema.
Então Keilson é o gênio proclamado pelo New York Times? Não saberia afirmá-lo com segurança. Inegável é que ele trouxe uma perspectiva original para um tema que se tornou um dos maiores clichês da nossa época, algo novo e que transcende qualquer particularidade. Não é pouca coisa.
Não tem face ou twitter você não?
Comentário por silvareis — 08/02/2013 @ 14:52 |
Não, não tenho.
Comentário por alfredomonte — 08/02/2013 @ 15:52 |