“O Chefe me falou de um sonho que teve certa vez—explicou Tom.—Nele, recebia um manuscrito e lhe diziam que aquilo salvaria sua vida. Contudo, ao olhar para o papel, não conseguiu ler o que estava escrito.”
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 25 de dezembro de 2012)
Há 19 anos, resenhei para esta mesma coluna A Verdade sobre o Caso D, de Fruttero & Lucentini, no qual um congresso de detetives famosos da ficção (Holmes, Poirot, Maigret etc) tentava desvendar o enigma de O Mistério de Edwin Drood, manuscrito interrompido com a morte abrupta de Charles Dickens, aos 58 anos, em 1870. A meu ver, o maior charme do romance paródico da dupla italiana estava na inclusão dos capítulos deixados pelo genial escritor vitoriano, os quais eu não conhecia. Era tão incrível, tão absorvente, que impedia que o leitor se interessasse minimamente por quaisquer brincadeiras pós-modernas ao seu redor. O que existia do relato, mesmo inacabado, fazia dele uma obra-prima, tal como mais tarde aconteceria com O primeiro homem, de Albert Camus.
“__ Aqui—disse o Dr. Steele.—Um furo no braço do Sr. Osgood. É a picada de uma seringa hipodérmica. Vê?
O médico continuou a falar:
__ Alguém lhe aplicou uma dose alta de narcótico, senhor. É por isso que a droga demorou tanto tempo para sair de seu corpo.
Rebecca sentiu que tremia. Osgood soergueu-se na cama. Olharam-se, espantados. Havia atravessado meio mundo, em parte como um esforço para deixar a tragédia de Daniel para trás, e acabaram se deparando com a mesma marca de injeção que havia nele. Tudo parecia fazer parte da mesma sinistra situação, embora o motivo ainda fosse um mistério (…)
__ Sr. Osgood, isso é igual ao que o senhor viu… no corpo de Daniel?—perguntou Rebecca em um sussurro, de modo que o médico não os ouvisse.—Não deve esconder nada de mim. Foi isso, não foi?
__ Sim—murmurou Osgood.
__ O que pode significar?
__ Que estamos enfrentando o mesmo adversário, desde a manhã em que Daniel morreu.
__ Mas quem?
__ Não sei.—Então, em parte magoado e em parte triunfante, exclamou: — Não foi Daniel quem se injetou com ópio. Agora temos certeza disso. Ele foi envenenado, Srta. Sand, assim como eu!
__ Acredita nisso?
__ Só pode ser! Dickens não poderia ter escrito tal descoberta por coincidência! Isso muda tudo. Precisamos ter uma visão mais clara da situação de Daniel, dos bandidos, de Drood, Srta. Sand…”
A Record lançou em 2012 a tradução de Alexandre Raposo para outro romance que se debruça sobre a possibilidade de se desvendar O mistério de Edwin Drood, e mesmo até descobrir uma possível continuação da história, supostamente já escrita: O Último Dickens [The Last Dickens, EUA, 2009].
É o terceiro romance de Matthew Pearl, prosseguindo a linha dos outros: histórias de suspense ligadas à própria literatura. Em O Clube Dante (2003), um assassino utilizava passagens da Divina Comédia e quem investigava os crimes eram renomados escritores da Boston pós-Guerra de Secessão (o grande Longfellow, James Russell Lowell e Oliver Wendell Holmes), cujo editor era J.T. Fields (também personagem de O Último Dickens); em A Sombra de Allan Poe (2006), um jovem advogado de Baltimore investigava o fim do criador das Histórias Extraordinárias, envolvendo-se até na sucessão do poder na França.
È preciso dizer que nenhum desses livros convenceu totalmente, apesar das premissas atraentes e de representarem uma leitura satisfatória, (enquanto distração). Teria Pearl realizado algo mais substancial em O Último Dickens que o tornasse finalmente o praticante-mor do gênero “mistério literário”?
Não, ainda não foi dessa vez. O livro alterna três sequências narrativas. Em 1870, divide-se em duas frentes: as investigações efetuadas por James Ripley Osgood, editor de Dickens na América, sócio mais jovem do Fields de O Clube Dante, para descobrir mais capítulos de Edwin Drood, permitindo que sua empresa enfrente a pirataria corrente (Dickens era o maior best seller da época); e as diligências, na Índia, de Frank, filho da celebridade recém-falecida, a fim de desbaratar uma quadrilha de ladrões de cargas de ópio (comercializado pela Inglaterra, e cultivado às custas da agricultura local, pauperizando ainda mais os camponeses). E em 1867, narra a temporada de conferências levadas a cabo por Dickens nos EUA, cercada de peripécias dramáticas e momentosos fatos políticos (o processo de impeachment do então presidente Andrew Johnson), e filtrada para o leitor pelos olhos de um dos criados da comitiva dickensiniana: o irlandês Tom Branagan, que salvará o Chefe (como era chamado num círculo mais íntimo) de uma fã psicopata, a qual também fornecerá, mais tarde, a chave do mistério que cerca o derradeiro manuscrito.
Parece bastante rico e movimentado, não? Nem tanto assim. Pearl sempre abusa do número de páginas (já era um problema em A Sombra de Allan Poe), e nas primeiras 150 muito pouco acontece. Além disso, ele não consegue unir satisfatoriamente todos os fios da meada. Não há justificativa para os episódios na Índia, a viagem de Dickens pelos EUA, que poderia ser a melhor parte, é meio apagada e arrastada, mesmo com as apelações melodramáticas, e o vilão (facilmente identificável pelo leitor mais atento), que está na cola de Osgood e de sua funcionária (o interesse romântico do livro) Rebecca Sand, para eliminar quaisquer vestígios de uma “segunda parte” de O Mistério de Edwin Drood (cuja trama seria baseada em fatos reais), ao se explicar para o herói e à amada, no clímax, consegue ser tão inconvincente que beira a comicidade.
Mas para o leitor que se aflija muito com o fato de que, mesmo com essa correria toda, “o último Dickens” permaneça inconcluso, eu posso revelar o que seria quase um milagre e um presente de Papai Noel: o espírito do autor de tantas histórias natalinas memoráveis incorporou-se num certo Thomas P. James e ditou a continuação da história, como se pode ler na edição brasileira de O Mistério de Edwin Drood, agora relançada pelo Instituto Lachâtre (cujo chamado na capa, na edição anterior, era “versão concluída pelo próprio autor”!!!???). O porquê de alguém, no Além, se preocupar com a continuação de um romance, isso sim é um mistério digno de investigação.
ADENDO
Em tempo: há alguns probleminhas nem um pouco sobrenaturais no texto publicado pela Record. Na página 228, por exemplo, afirma-se: “O presidente Andrew Johnson compareceu a todas as leituras em Washington e convidou Dickens e Dolby à Casa Branca no aniversário do romancista (…) Dickens convenceu-se de que Johnson se sairia bem…” Até aí tudo bem, apesar da literalidade das “leituras”. Mas logo a seguir se lê uma frase estranhíssima em sua formulação, um comentário de Dickens a respeito do presidente: “Esse é um homem que deveria ser morto para sair do caminho”; e na pág. 325, numa alusão à postura de um ator que encarnava Edwin Drood, morto num incêndio suspeito, lemos: “Aquele Grunwald costumava dizer que ninguém que tivesse encarnado Edwin Drood poderia entender a atitude do personagem…” [na verdade, precisávamos aqui de um “não”: “ninguém que NÃO tivesse encarnado Edwin Drood poderia entender a atitude do personagem…”]
TRECHOS SELECIONADOS
“Ao recolher seus pertences no saguão do hotel, Osgood se pegou olhando para um espelho pela primeira vez desde que fora atacado. Ao ver seu reflexo, ergueu as mãos involuntariamente até o rosto e então as deixou escorregar até o pescoço, como se tentando manter a cabeça no lugar. Ele piscou. Quando desaparecera sua aparência infantil, aquela expressão inocente que ele sempre amaldiçoara e louvara? No lugar, havia o rosto pálido de um fantasma, quase cadavérico, com uma complexa teia de rugas de cansaço e sombras escuras ao redor de olhos fundos. Seu cabelo estava quebradiço e sem vida. Ou assumira uma máscara de morte prematura ou passara de uma tenra juventude para uma dura maturidade. Ele não conseguia distinguir. Mas havia um elemento encorajador em sua aparência. Ele não era mais inexpressivo ou passível de ser confundido com outro jovem homem de negócios de Boston. Aquele era James R. Osgood, embora abatido. Não havia dúvidas quanto àquilo.”
“__ E se isso quiser dizer que não há nada a ser descoberto?
__ Talvez estejamos apenas procurando nos lugares errados—disse Rebecca, corajosamente.
__ Sim—retrucou Tom, enfático. Então, bateu com a mão sobre a mesa.—Sim, Srta. Sand! Mas não é apenas isso. Não apenas o lugar errado, mas o tempo errado!
__ O que quer dizer, Sr. Branagan?—perguntou Rebecca.
__ Eu estava me lembrando quando estávamos nos EUA, em um trem a caminho das leituras na Filadélfia, o Chefe começou a falar sobre Edgar Allan Poe com muita tristeza. Disse que, quando viu Poe na última vez que fora à Filadélfia, conversaram sobre Caleb Williams. Quem é o autor deste romance?
__ William Godwin—disse Osgood.
__ Obrigado. O Sr. Dickens contou a Poe que Godwin havia escrito a última parte do livro e somente então começara a escrever a primeira parte. Poe disse que ele também escrevia histórias de mistério de trás para a frente. E se o Sr. Dickens, ao escrever seu grande mistério,começou pelo fim?” [aqui nesta passagem final, que aparece na pág. 299, há também um probleminha, pois a frase foi publicada do seguinte jeito: “E se o Sr. Dickens, ao escrever seu grande mistério, não começou pelo fim?”, esse “não” evidentemente sobrando]
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