MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

24/12/2012

QUEM É O SALIERI DE DICKENS ? ou Como um romance inacabado pode ser o máximo


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Em A VERDADE SOBRE O CASO D.[1], Carlos Fruttero & Franco Lucentini se  propõem a completar o derradeiro texto de Charles Dickens, que morreu em 1870, após escrever 22 capítulos[2]. Convocam para essa tarefa Sherlock Holmes, Hercule Poirot, Inspetor Maigret, Nero Wolf e muitos outros detetives “emprestados” da ficção policial.

É mais um exemplo da atração fatal dos escritores italianos pelas brincadeiras com textos e manuscritos, juntando-se a, entre outros, Umberto Eco, Italo Calvino (Se um viajante numa noite de inverno) e ao Leonardo Sciascia de O Conselho do Egito.

Seria uma ótima diversão, não ficasse tão aquém do talento de Dickens. Por mais simpatia e graça que a dupla injete no seu congresso de detetives, e por mais gostosa que seja a leitura, seguindo os indícios (e incongruência e inverossimilhanças) deixados pelo autor da história inacabada, o fato é que o maior encanto, a justificativa do emprego de tempo no volume, estão mesmo nos 22 capítulos de O Mistério de Edwin Drood.

Drood desapareceu. Fugiu, foi morto? Sabemos que, na véspera, rompera seu noivado, acertado desde a infância.

Acontece que seu tio, Jasper (que abre a narrativa num antro de ópio), mestre do coro na cidadezinha medieval de Cloisterham, é apaixonado por Rose (a noiva) e, nos seus delírios, sonha (pelo menos é o que se supõe) com a morte  do sobrinho. Portanto, há um clima ameaçador, realçado pelo crescimento explícito do demonismo de Jasper, o qual fica prestes a se tornar um grande vilão quando a narrativa é interrompida. Mas não será um truque de Dickens para nos despistar? É um dos pontos do congresso.

Para complicar, aparece um casal de irmãos anglo-cingaleses, Helena  e Neville; este apaixona-se por Rose e tem uma violenta discussão com Edwin, transformando-se no suspeito principal quando do desaparecimento.

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Afastados os rivais, Jasper tenta aproximar-se de Rose, e esta (que o abomina) procura auxílio em Londres, junto não só a seu tutor, Mr. Grewgious, como também do  Reverendo Crisparkle (que adotara Helena e Neville), personagens com aquela mistura dickensiniana perfeita e deliciosa de humor e ternura. De fato, as caracterizações são o forte do texto. Não é à toa que Dostoiévski e Kafka admiravam o grande vitoriano.

Jasper, Grewgious e Crisparkle são memoráveis, e há ainda uma fantástica de galeria de personagens mais episódicos, que têm uma vida gritante (às vezes até demais: o tom sobrecarrega-se); entre eles, Durdles, que faz os túmulos de Cloisterham, e que leva Jasper a conhecer os segredos da catedral (onde presumivelmente Drood foi morto, e o cadáver semidestruído pela cal viva).

Após debates e confusões no congresso, num clima pós-moderno que parece deliberadamente construído para contrastar com a atmosfera vitoriana (mas não cai tão bem assim), a solução encontrada pela dupla, tendo como porta-voz Poirot (o detetive triunfante) é a la Amadeus (um rival invejoso).

Não ligando muito para ela, pois lhe falta o necessário impacto, eficácia ou mesmo relevância, o leitor sonha com seu próprio desenvolvimento da história, após 22 capítulos de magia e maestria. É, no fim, a mesma coisa que alguém se propor a desvendar o adultério de Capitu. Precisa?

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[1] La verità sul Caso D (Itália, 1989), em tradução de Paulo Henriques Britto & Rosa Freire D´Aguiar para a Companhia das Letras.

[2] Nota de 2012: a resenha acima foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 31 de agosto de 1993. No recente O Último Dickens, de Matthew Pearl, afirma-se que o genial autor inglês morreu após completar o SEXTO capítulo.

Em  1993, não sabia nada sobre a devoção obsessiva em torno do texto e de uma possível continuação, o que foi muito legal para saborear melhor o próprio Mistério de Edwin Drood. Fico feliz em saber que Pearl chega à mesma conclusão a que eu chego na minha resenha, embora pareça que, do Além, veio a solução do mistério.

la verità

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