“…o júbilo de uma dor tão íntima e aguda…” (Henry James, Os embaixadores)
( abaixo resenha publicada, sem a nota de rodapé, originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 10 de abril de 2012)
I
Assim como os portugueses José Luís Peixoto e Gonçalo M. Tavares, Ricardo Lísias é um escritor ainda relativamente jovem (nasceu em 1975), cuja ficção pode ser considerada uma das melhores no cenário contemporâneo mundial.
Para isso, a principal contribuição foi a de O Livro dos Mandarins (2009), contudo já no seu livro de estreia, quase no umbral do século XXI, Cobertor de Estrelas (1999), mostrava a que veio: ao relatar o cotidiano de um garoto que vive na rua, ele criou uma linguagem toda peculiar, de forma que o leitor ao mesmo sentisse o nível de consciência (ou mesmo inconsciência) do menino da sua própria condição e a barra “real”, muito além da mera situação individual[1]. Diga-se de passagem, essa preocupação social distinguia Lísias do “chorus line” dos jovens ficcionistas brasileiros da atualidade, em sua maior parte engajados em tediosos jogos metalinguísticos, em desconstruções do sujeito e do foco narrativo, quando não impregnados pela influência de Rubem Fonseca e da linguagem cinematográfica.
Para cada um dos textos posteriores, como aqueles reunidos em Anna O. e outras novelas (2007), o romance Duas praças (2005), além do já mencionado e maravilhoso Livro dos Mandarins, o talentoso autor paulista forjou uma linguagem própria, na qual víamos o embate entre a racionalização e a loucura, entre a expressão e a inarticulação, de uma feição que o aproxima mais, entre os dois lusitanos citados acima, e apesar das diferenças, de Gonçalo M. Tavares, também um mestre em pôr em cena as velhas dicotomias da mentalidade ocidental regida pelo mercado: produção, eficácia, planejamento, lógica versus loucura, insubmissão, acaso, caos.
II
“Logo avistei meu parente. Por trás de uma mesa, ele acenou e depois me chamou pelo nome —Ricardo Lísias.
Levantou-se e veio me abraçar. Tentei parecer feliz, mas continuava com muito sono. O jeito foi dizer a verdade: não estou conseguindo ficar acordado direito. Quando me respondeu que superar o fuso é mesmo difícil, senti que talvez tivesse na minha frente um amigo. Contei toda a história do André, inclusive que ele tinha pedido ajuda e eu, assustado, batido o telefone. Senti vontade de chorar e meu parente percebeu. Por isso, pediu água com açúcar.
__ Mas não estou nervoso —expliquei. Desde que cheguei a Beirute,não consigo me livrar do sono. Para me distrair, amigável e compreensivelmente, resolveu mudar de assunto e conversar sobre a família. Decidi ser direto e falei que descobrira fortes indícios de um que um tio-avô tinha ligações, a partir do Brasil, com o terrorismo no Oriente Médio. Meu parente ficou branco.”
O protagonista (chamado Ricardo Lísias) do recém-lançado O Céu dos Suicidas só começa a fazer essas investigações inquietantes, que o levam a se indispor com a família toda e a sofrer ameaças no Líbano (há um momento em que ele é quase executado), como se já não bastasse andar aos gritos pelas ruas e ofender a todos os conhecidos, porque seu melhor amigo enforcou-se.
Até então, após ter abdicado de suas coleções pessoais, sua grande paixão como adolescente, Ricardo acomodara-se confortavelmente como um “especialista em coleções”. Ou seja, um expert em formas de ordenar o mundo. O pirado André traz o caos à sua casa, quebra todos os aparelhos domésticos, começa a se cortar com um canivete, e obriga o anfitrião a expulsá-lo. Com sua morte, a culpa pessoal vai cruzar com a proverbial e antiga exclusão dos suicidas da salvação, comum a várias religiões. E aí então o mundo “ordenável” se esfacela, o passado e suas possibilidades perdidas avulta (Ricardo tem “saudades de tudo”) e nosso herói tenta, através de investigações irrisórias e truncadas, além de buscas espirituais (que esbarram sempre no impedimento dos suicidas ao “céu”, seja católico, protestante ou espírita) descobrir um fio de ordem no caos, enquanto vai perdendo a linguagem “dos outros”, sentindo-se incapaz de se comunicar ou se fazer entender…
Aguardado intensamente, após o virtuosismo e brilho de O Livro dos Mandarins, o novo livro, mais comedido e tão rigoroso quanto suas novelas, prova que Ricardo Lísias, o escritor, pode fazer com que seus personagens se percam, mas se mantém no controle e tem ainda muito a oferecer. Como o aspirante a campeão mundial de xadrez da novela Dos Nervos, já é um rematado mestre, mesmo com as tensões que move no tabuleiro.

[1] Um trecho: “Ruim mesmo é quando, bem no meio da noite, os meninos grandões seguram o braço dos outros e fazem aquela coisa que dói demais. Teve um dia que até saiu sangue, mas os outros ficaram rindo e jogando o calção do menino de um lado para outro e ficaram falando que ele é mulherzinha. Depois, ele pegou o calção e foi deitar lá do outro lado, só que, mesmo assim, não conseguiu dormir direito, porque ficou com medo de que os meninos grandões voltassem e quisessem tirar o calção e fazer aquela coisa de novo.
Teve uma vez que o padre gordão ficou sabendo daquilo, quando o menino que caiu da estátua contou que eles ficavam tirando a calça de noite. Foi o pior, porque o padre gordão ficou muito vermelho e falou que isso é uma coisa muito feia de se fazer e que o menino \Jesus está vendo tudo e fica tão bravo que até pode dar um castigo para eles e falou que só gente grande é que pode fazer besteira e, além de tudo, alguém pode passar e ver.
O menino não gosta de fazer besteira, mas os outros seguram e depois não dá para ir embora, porque, se não, tem que dormir sozinho lá na praça, e quando isso acontece, é a pior coisa do mundo, porque as luzes ficam piscando e as mulheres que vestem roupa branca e cantam uma música muito baixinho podem vir e puxar o pé. O problema é que os outros ficam gritando e falando que ele é mulherzinha e aí, de vez em quando, dá vontade de chorar, igual no dia que saiu sangue e ficou doendo até muito depois…”
(abaixo resenha publicada, de forma ligeiramente mais condensada, na Folha de São Paulo de 14 de abril de 2012
VER http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/36901-livro-faz-leitor-sentir-no-na-garganta.shtml)
I
Na nota de agradecimentos que fecha O Livro dos Mandarins, Ricardo Lísias menciona o suicídio de um grande amigo, André Silva.
Em O Céu dos Suicidas, um personagem (também narrador) chamado Ricardo Lísias desmorona emocionalmente após o amigo André enforcar-se, resvalando num surto no qual se misturam insônia, raiva (grita pelas ruas, insulta todos os conhecidos) a angústia que explica o título (motivada pelo destino final dos suicidas), por conta da culpa (expulsou o amigo de casa, que a transformara num caos de utensílios domésticos quebrados e depois começara a se cortar com um canivete) e o sentimento difuso de “saudade de tudo”, de sua vida anterior à condição de um “especialista em coleções” (suas coleções pessoais haviam sido descartadas e só restara essa expertise).
Durante a crise, ele tenta refazer passos da vida de André, solucionar um mistério familiar indo ao Líbano, experiência depois da qual procura autoridades religiosas e se submete, por pressão dos parentes. a um tratamento psiquiátrico.:
“Ainda chorando, veio-me à cabeça muito do que eu tinha feito junto com o meu amigo. As duas vezes em que ele cheirou cocaína comigo por causa de um amor bobo, a casa de massagem onde a gente ia, eu atrás de ninguém e ele de Aline, o jeito que ele me abraçou depois da defesa de doutorado. Tudo o que nós dois, os grandes amigos, fizemos de bom e de ruim. Eu chorava porque não esquecia a voz do meu amigo para passar o fim de semana em casa, depois o rosto dele deformado pelos remédios, me ajuda, Ricardo, mas eu estava esgotado, amigão… e foi para o hospício, meu grande amigo, mas eu chorava sobretudo porque sozinho, muito sozinho, com a sujeira escorrendo pelo ralo do banheiro de um hotel do Líbano, tinha acabado de descobrir quem eu sou de verdade, um bosta, deixei meu grande amigo André se enforcar.”
II
Do final de O Livro dos Mandarins, um dos raros romances contemporâneos que poderíamos qualificar de fabulosos, ficou também a expectativa que pesa sobre O Céu dos Suicidas enquanto livro imediatamente seguinte: depois de tanta exuberância narrativa, o que viria?
Dir-se-ia que Lísias voltou ao estilo econômico, em que contenção e uma linguagem no limite conviviam, de suas novelas (reunidas em Anna O.) e de seus pequenos romances Cobertor de Estrelas & Duas Praças.
Não. Apesar da moldura que adotou —88 capítulos curtíssimos, praticamente no mesmo formato— e de se voltar para os mesmos impasses de racionalização extrema (mesmo em situações intoleráveis, como em Capuz) e desagregação, até mesmo da linguagem (embora Lísias, o personagem, não chegue ao ponto da Maria de Duas Praças ou da professora de Dos Nervos), O Céu dos Suicidas não é uma novela disfarçada de romance.
Ele expande uma tendência do universo de Lísias, o escritor, o qual sempre gostou de desdobrar suas histórias e criar pequenos incidentes que pareciam não ter nada a ver com o relato central. No novo livro, o episódico (as picuinhas familiares, a viagem ao Líbano, os confrontos com colecionadores) ganha uma relevância maior e transforma o romance numa gama de possibilidades mesmo que truncadas, resistindo a fechar a conta, a formar uma totalidade narrativa que dê sentido à busca de Lísias, o personagem, atravessando a corda bamba entre o caos (um mundo que grita à sua volta e você grita para o mundo, numa algaravia incompreensível) e uma vida domesticada.
O leitor talvez esteja se perguntando, como hoje é inevitável, o que pode ter O Céu dos Suicidas de biográfico. Eu não sei e não me importa. Pois a dor que deveras sente Lísias, o escritor, foi virtuosisticamente resolvida no “chega a fingir que é dor”: um romance tão elegante, tão irônico, e que faz ainda assim o leitor sentir o proverbial nó na garganta. Só por isso, não importa como venha a morrer um dia (que seja em data distante), ele merece o céu dos escritores.
São Paulo, sábado, 14 de abril de 2012![]() |
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CRÍTICA ROMANCE Livro faz leitor sentir nó na garganta No romance “O Céu dos Suicidas”, Ricardo Lísias expande tendência de desdobrar histórias O episódico ganha uma relevância maior e transforma o romance numa gama de possibilidades, mesmo que truncadas ALFREDO MONTE Em “O Céu dos Suicidas”, o narrador chamado Ricardo Lísias desmorona após o amigo André enforcar-se, resvalando num surto no qual se misturam insônia, raiva, angústia, culpa (expulsou de casa o amigo, que começara a se cortar com um canivete) e uma “saudade de tudo”, de sua vida anterior à condição de um “especialista em coleções” (suas coleções pessoais haviam sido descartadas e só restara essa expertise). Durante a crise, ele tenta refazer passos da vida de André, solucionar um mistério familiar indo ao Líbano, experiência depois da qual procura religiosos e se submete a tratamento psiquiátrico… Do final de “O Livro dos Mandarins”, um dos raros romances contemporâneos que podemos qualificar de fabulosos, ficou também a expectativa que pesa sobre “O Céu dos Suicidas” enquanto livro imediatamente seguinte: depois de tanta exuberância narrativa, o que viria? Dir-se-ia que Lísias voltou ao estilo econômico, em que contenção e uma linguagem no limite conviviam, de suas novelas (reunidas em “Anna O.”) e de seus pequenos romances “Cobertor de Estrelas” e “Duas Praças”. Não. Apesar da moldura que adotou -88 micro-capítulos, praticamente no mesmo formato- e de se voltar para os mesmos impasses entre racionalização extrema e desagregação, até mesmo da linguagem, “O Céu dos Suicidas” não é uma novela disfarçada de romance. Ele expande uma tendência do universo de Lísias, o escritor, o qual sempre gostou de desdobrar suas histórias e criar incidentes que pareciam nada ter a ver com o relato central. No novo livro, o episódico (picuinhas familiares, viagem ao Líbano) ganha uma relevância maior e transforma o romance numa gama de possibilidades, mesmo que truncadas, resistindo a fechar a conta, a formar uma totalidade narrativa que dê sentido à busca de Lísias, o personagem, atravessando a corda bamba entre o caos e uma vida domesticada. O leitor talvez esteja se perguntando, como hoje é inevitável, o que pode ter “O Céu dos Suicidas” de biográfico. Eu não sei e não me importa. Pois a dor que deveras sente Lísias, o escritor, foi virtuosisticamente resolvida no “chega a fingir que é dor”: um romance tão elegante, tão irônico, que faz o leitor sentir o proverbial nó na garganta. Só por isso, não importa como venha a morrer (que seja em data distante), ele merece o céu dos escritores. O CÉU DOS SUICIDAS Leia trecho do livro em |
[…] Monte, sábio. lml. Gostar disso:GostoSeja o primeiro a gostar disso […]
Pingback por calopsitaescapista — 14/04/2012 @ 12:03 |
acabei de ler a ilustrada de hoje, dia 14, e tive a gratíssima surpresa de encontrar sua matéria lá: parabéns. continuo recebendo os posts no meu e-mail: supimpa! forte abraço.
Comentário por anna rocha — 14/04/2012 @ 13:33 |
Obrigado, Anna. Um grande beijo.
Comentário por alfredomonte — 14/04/2012 @ 15:06 |