O OURO DOS TIGRES
Publicado em 1972, no seu belo título já trai a recorrente fascinação de Borges com esse que é o animal mais bonito. A imagem do ouro ligado ao animal selvagem, uma espécie de fulgor da ferocidade, também trai um dos temas centrais dessa coletânea de 48 poemas. Em ocasiões diversas (por exemplo, ao comentar Ulisses, de Joyce, ou A pedra do reino, de Ariano Suassuna), eu levantei a questão da nostalgia do épico, e é isso que vemos em O ouro dos tigres. Borges como o fazedor de versos, descendente longínquo e pálido dos aedos e cantores de sagas, ou ainda, em termos mais pessoais e irrisórios, último representante de uma família de militares “machos”, um eco já apagado, uma sombra, do que foi grandioso, e se não foi, ficou assim “naquele plástico ontem irrevogável”, “Essas coisas podiam não ter sido./ Quase não foram. Nós as concebemos/ em um ontem fatal e inevitável”,“O ontem ilusório é um recinto/ de imutáveis figuras de cera/ ou de reminiscências literárias/ que o tempo irá perdendo em seus espelhos” (“O passado”). Não por acaso, os dois primeiros poemas, que estabelecem o “clima”, por assim dizer, tratam de um conquistador, um homem de ação (“Tamerlão”), que protagonizou uma tragédia de Christopher Marlowe, o grande rival do jovem Shakespeare, e de espadas famosas (“Espadas”).
A ação heróica, destinada a ser literatura (e um dos elementos daquela continuidade de que eu falava nos comentários sobre Elogio da sombra), o épico que encontra o lírico e o cósmico em Whitman, presença tutelar do livro desde o prólogo (apesar de este fornecer uma imagem ambivalente, mais negativa que positiva; “Para um verdadeiro poeta, cada momento da vida, cada fato, deveria ser poético, já que profundamente o é. Que eu saiba, ninguém alcançou até hoje essa alta vigília. Browning e Blake se aproximaram mais do que qualquer outro; Whitman a propôs, mas suas deliberadas enumerações nem sempre passam de catálogos insensíveis”):
“Roma, que impõe o numeroso hexâmetro
Ao obstinado mármore dessa língua
Que manejamos hoje, espedaçada;
Os piratas de Hengist que atravessam
A remo o temerário mar do Norte
E com fortes mãos e a coragem
Fundam um reino que será o Império;
O rei saxão que oferta ao da Noruega
Sete palmos de terra e que cumpre,
Antes que o sol decline, a promessa
Na batalha de homens; os cavaleiros
Do deserto, que cobrem o Oriente
E ameaçam as cúpulas da Rússia;
Um persa que relata a primeira
Das Mil e uma noites e não sabe
Que deu início a um livro que os séculos
Das outras gerações, ulteriores,
Não entregarão ao quieto esquecimento;
Snorri, que salva em sua perdida Tule,
Sob a luz de crepúsculos morosos
Ou na noite propícia à memória,
As letras e os deuses da Germânia;
O jovem Schopenhauer, que descobre
Um projeto geral do universo;
Whitman, que numa redação do Brooklyn,
Entre o cheiro de tinta e de tabaco,
Toma e a ninguém conta a infinita
Resolução de ser todos os homens
E de um livro escrever que seja todos…”
E o poeta Borges, ou o avatar de poeta que ele tomou para si neste livro? Vejamos o último dos “Tankas” (estrofe japonesa que tem um primeiro verso de cinco sílabas, o segundo de sete sílabas, o terceiro de cinco sílabas e os dos últimos de sete sílabas):
“Não ter tombado
Como outros de meu sangue,
Na batalha.
Ser na inútil noite.
O que conta sílabas.”
“…com o verso / devo lavrar meu insípido universo”, lemos em “O cego”; “…o resignado / exercício do verso não te salva” (“Ao triste”), enquanto se espalham as alusões ao projeto whitmaniano:. Em “On his blindness”: “Walt Whitman, esse Adão nomeador / das crianças que existem sob a lua”; em 1971 (um poema em homenagem à descida do homem na lua e seus antecedentes míticos e literários): “Esses filhos de Whitman haviam pisado/ o páramo lunar, o inviolado…”, numa paródia a sério da expressão “filhos de Adão”.
E por falar em Adão, uma das “Treze moedas” recapitula concisamente uma situação já explorada no poema “Lenda” de Elogio da sombra:
“Foi no primeiro deserto.
Dois braços atiraram uma grande pedra.
Não houve um grito. Houve sangue.
Houve pela primeira vez a morte.
Já não me lembro se foi Abel ou Caim”.
No poema anterior:
“Abel e Caim se encontraram depois da morte de Abel. Caminhavam pelo deserto e se reconheciam de longe, porque os dois eram muito altos. Os irmãos sentaram-se na terra, fizeram um fogo e comeram. Guardavam silêncio, à maneira das pessoas cansadas quando o dia declina. No céu despontava alguma estrela, que ainda não recebera seu nome. À luz das chamas, Caim notou na testa de Abel a marca da pedra e deixou cair o pão que estava para levar à boca e pediu que seu crime lhe fosse perdoado.
Abel respondeu:
–Tu me mataste ou eu te matei? Já não me lembro; aqui estamos juntos como antes.
–Agora sei que você me perdoou de verdade, disse Caim, porque esquecer é perdoar. Eu também tentarei esquecer.
Abel disse devagar:
–Assim é. Enquanto dura o remorso, dura a culpa”.
Voltando à “nostalgia do épico”, um dos elementos constituintes na mítica pessoal borgiana é a figura do “gaúcho” e seu cenário natural, o pampa:
“O beco final com seu poente.
Inauguração do pampa.
Inauguração da morte.” (“Oeste”)
“No fim de sua terceira geração
Regresso às planícies dos Acevedo,
Os meus antepassados. Vagamente
Procurei-os por esta velha casa…
Na chuva que ensombrece a varanda,
Entre o crepúsculo de seus espelhos,
Num reflexo, um eco, que foi seu
E que agora é meu, sem que eu o saiba…
Aqui foram a espada e o perigo,
As duras prescrições e os levantes;
Firmes sobre o cavalo, aqui regeram
A sem princípio e a sem fim planura…” (“A busca”)
“… Professaram
A antiga fé do ferro e da coragem…
Por essa fé morreram e mataram.
Entre os acasos de uma montonera
Pereceu pela cor de uma divisa;
Foi quem nada pediu, nem a efêmera
Glória, feita de alarde e de brisa.”
Há até uma poética do épico em “Os quatro ciclos”, que afirma que “Quatro são as histórias. Durante o tempo que nos resta, continuaremos a narrá-las, transformadas”. São elas a história da Ilíada, da Odisséia, de Jasão e o velocino, e do sacrifício de um deus (Átis, Odin, Cristo).
Nessa obsessão pelo épico, que só estou pincelando, há uma homenagem a Camões (no poema “O mar”; aliás, mar e épico estão inextricavelmente ligados), embora seu nome não seja citado:
“O mar. O mar de Ulisses…
É o do tal cavaleiro que escrevia
A um só tempo a epopéia e a elegia
De sua pátria, no pântano de Goa…”
E o próprio Borges, numa auto-ironia, mostra sua fidelidade aos ideais militares que, vinculada a coisas imemoriais e nada comezinhas, tiveram o efeito desastroso de propiciar desastradas declarações políticas num país sob ditadura militar. No poema “A sentinela”, e Borges- O outro determina coisas para Borges-o mesmo::
“Converteu-me ao culto idolátrico de militares mortos, com
os quais talvez não pudesse trocar uma única palavra”.
Acho que esse trecho esclarece bem a questão “Borges & regime militar”.
Esse mesmo poema termina de uma forma terrível:
“A porta do suicida está aberta, mas os teólogos afirmam
que na sombra ulterior do outro reino estarei eu, me
esperando.”
Que ecoa a fórmula de “O ameaçado”: “o horror de viver no sucessivo”, o que expressa a impotência dos seres majestosos e enjaulados (a pantera, o tigre, cuja visão o fascinou antes da cegueira):
“Em vão é vário o orbe. A jornada
Que cumpre cada qual já foi fixada” (“A pantera”)
Do ouro dos tigres só sobrou na cegueira a cor amarela:
“Agora só perduram contornos amarelos,
E só consigo ver para ver pesadelos.”
Em 1970, Borges esteve em São Paulo e lá escreveu “Poema da quantidade”:
“Aqui são excessivas as estrelas.
O homem é excessivo. As gerações
Inúmeras de aves e de insetos,
Do jaguar constelado e da serpente,
De galhos que se tecem e entretecem,
Do café, da areia e das folhas
Oprimem as manhãs e nos prodigam
Seu minucioso labirinto inútil.
Talvez cada formiga que pisamos
Seja única ante Deus, que a define
Para a execução das regulares
Leis que regem Seu curioso mundo.
Não fosse assim, o universo inteiro
Seria um erro e um oneroso caos.
Os espelhos do ébano e da água,
O espelho inventivo de um sonho,
Os liquens e os peixes, as madréporas,
Tartarugas alinhadas no tempo,
Os vaga-lumes de uma única tarde,
As araucárias e suas dinastias,
As perfiladas letras de um volume
Que a noite não apaga são sem dúvida
Não menos pessoais e enigmática
Que eu, que as confundo. Não me atrevo
A julgar nem a lepra nem Calígula.”
Não posso me furtar a transcrever parte de “A um gato”:
“Não são mais silenciosos os espelhos
Nem mais furtiva a aurora aventureira;
Tu és, sob a lua, essa pantera,
Que divisam ao longe nossos olhos…
Mais remoto que o Ganges e o poente,
Tua é a solidão, teu o segredo.
Teu dorso condescende à morosa
Carícia de minha mão. Sem um ruído,
Da eternidade que ora é olvido,
Aceitaste o amor dessa mão receosa.
Em outro tempo estás. Tu és o dono
De um espaço cerrado como um sonho.”
E para finalizar essa minha passagem pelos poemas de O ouro dos tigres, duas passagens que eu acho emocionante. Uma é o último verso de “O ameaçado”, um poema sobre o amor “com suas mitologias, com suas pequenas magias inúteis”):
“Dói-me uma mulher por todo o corpo” (que bom ver o corpo referido em Borges).
A outra, que considero um fecho perfeito para qualquer texto, é de “O palácio”. Apesar do horror de viver no sucessivo:
“… já estamos mortos quando nada nos toca, nem uma palavra, nem um desejo, nem uma memória. Eu sei que não estou morto.”
Escrito em julho de 2009; todas as passagens foram traduzidas por Josely Vianna Baptista
Dentro da mesma linha, acesse também:
https://armonte.wordpress.com/2012/11/02/historia-da-noite-o-que-a-memoria-concede/
https://armonte.wordpress.com/2012/11/01/as-perpetuas-aguas-de-heraclito-a-moeda-de-ferro-de-borges/
https://armonte.wordpress.com/2012/10/26/borges-e-o-nome-da-rosa/
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