UM ROMANCE ASSOMBRADO E ASSOMBRADOR
Resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 10 de março de 1998
“Em sociedades reduzidas à conspurcação e ansiedade, o terror é o único ato significante. Existem coisas demais, mais coisas e mensagens e significados do que poderíamos usar em dez mil vidas. Inércia-histeria. É possível a história? Existirá alguém sério? Quem poderá ser levado a sério?”
Eis um trecho de MAO II (na tradução de Edson Rocha Braga), de Don DeLillo, a história de Bill Gray, famoso escritor recluso que vive escondido, enquanto tenta concluir um livro, reescrevendo-o interminavelmente. Scott, ex-junkie e fanático pela obra de Gray, e Karen, ex-discípula do reverendo Moon, vivem com ele. Um dia, Scott, a contragosto, traz Brita, obscura fotografa de Nova York, para fazer uma sessão com Gray.
Após essa incursão de Brita na esquiza vida doméstica dos três, Gray inesperadamente visita Nova York e foge de Scott, ao receber uma proposta do editor Charles Everson: fazer, em Londres, a leitura pública de poemas de um suíço mantido como refém por uma milícia maoísta de Beirute, capital mundial do terrorismo.
Gray termina não fazendo a leitura, contudo decide aproximar-se mais do Terror, tentando chegar a Beirute (via Atenas) para conhecer o líder da milícia, Abu Rashid…
MAO II é um romance lindíssimo. Dá até para imaginar o filme que o genial David Cronenberg faria dele. DeLillo é um autor perturbador,na linha de J.G.Ballard, Philip K. Dick e de Thomas Pynchon, este último tão recluso e isolado na vida real quanto Bil Gray.Não é à toa que desde o premiado Ruído Branco (1985) ele se transformou num dos ficcionistas mais importantes e influentes dos EUA.
O leitor é apresentado a um mundo fantasmagórico (o que é bem representado pelo título, que alude a um trabalho de Andy Warhol, utilizando—como fez com relação a outras personalidades—o rosto do líder chinês), no qual arte, mídia, lixo, loucura e terrorismo se refletem mutuamente, no qual se pode fazer intermináveis elucubrações (e a elas se dedicam todos os personagens de MAO II), porém nunca se consegue criar qualquer significado estável.
Um mundo assim de escombros, de dissolução, de horror, não impede que o grande escritor norte-americano consiga (ao contrário de Ballard, Dick & Pynchon) criar personagens humanos e interessantes, que nos envolvem em seus desconcertantes (des)caminhos, como Karen, ao ir para Nova York atrás do volatilizado Gray, ingressando, com os restos da sua devoção (não ao Mao, mas ao Moon), no universo dos homeless e sua linguagem peculiar. Poucas vezes de leu algo tão bonito e desesperado na ficção atual que tangencia o apocalíptico. Talvez só na Doris Lessing de Memórias de um sobrevivente & Shikasta, ou no Paul Auster de No país das últimas coisas., ou mesmo em Leviatã (dedicado, aliás, ao autor de MAO II).
Além da riqueza das questões que levanta, esse romance assombrado e assombrador merece ser consagrado como um dos romances da década de 90 pela sua perfeita estrutura circular. A história de Bill Gray é emoldurada por duas impressionantes cenas (num estádio e em Beirute)em que se mostra a adesão de uma massa a um líder carismático (Moon no começo; o terrorista Abu Rashid no final) e que têm como momento culminantes cerimônias de casamento que desafiam todo o poder da Razão.Assim como as palavras impressionantes de Don DeLillo desafiam o indizível e o impensável.
SUBMUNDO APÓS O ONZE DE SETEMBRO
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 02 de outubro de 2001)
I
Amanhã, 03 de outubro, a vitória dos Giants sobre os Dodgers no campeonato de beisobol em Nova York, estará completando 50 anos. A bola que decidiu a partida desapareceu. Ela é um dos elementos que interligam a trama de SUBMUNDO [“Underworld”, 1997, aqui no Brasil traduzido pelo grande Paulo Henriques Britto], obra-prima de 700 páginas de Don DeLillo, cujo prólogo é a sensacional narração do histórico jogo de 1951 e é intitulada O triunfo da Morte, alusão ao quadro de Brueghel (fica-se sabendo, ao longo da partida, que os russos realizaram seu primeiro teste , patômico, ombreando-se aos EUA na capacidade de destruir o mundo).
O vizinho de bairro de DeLillo, Paul Auster publicou em 1992 Leviatã, no qual se aborda a questão do terrorismo; o livro, aliás, é dedicado ao autor de SUBMUNDO que, na mesma época lançara outro de seus romances geniais (Mao II), no qual se lia: “Quem poderá ser levado a sério? Apenas o crente letal, aquele que mata e morre pela fé. Tudo o mais é absorvido. O artista é absorvido, o maluco de rua é absorvido, tratado e incorporado. Somente o terrorista ficou de fora. A cultura ainda não conseguiu descobrir como assimilá-lo. É confuso quando o terrorista mata um inocente. Mas essa é exatamente a linguagem que chama a atenção, a única linguagem que o Ocidente entende”.
Um terceiro motivo para se falar de SUBMUNDO e mostrar por que ele é uma leitura obrigatório no momento, ao contrário das supostas e inúteis previsões do sr. Nostradamus (que parecem um terreno baldio, onde se pode achar tudo que se quer): a capa da edição brasileira utiliza uma foto perturbadora de André Kertész, na qual vemos o World Trade Center (por sinal, várias vezes citado na quarta parte do romance, ambientada nos anos 70), através de um ângulo sinistro e ameaçador. Com os fatos recentes, a capa ganhou um significado ainda mais tétrico, bem como o livro.
E um escritor fantástico como DeLillo não deixa escapar nada, tudo volta no romance com um novo significado: uma reprodução do quadro de Brueghel (na revista Life) cai nas mãos de Edgar J. Hoover, o chefão da inteligência americana na Guerra Fria, homem reacionário, reprimido e com fobia de micróbios, em plena partida entre Giants & Dodgers. O significado do quadro volta à tona quando ele vai, em 1966, ao famoso Baile Preto e Branco, no Plaza de Nova York, e há protestos contra a Guerra do Vietnã, incluindo uma dança macabra na própria festa, repleta de chiques, ricos e famosos.
Já nos anos 80, conhecemos a velha freira, deliciosamente chamada Irmã Edgar, também reacionária e paranóica com a possibilidade de qualquer tipo de contaminação, assistir ao triunfo da morte nas ruas do Bronx: quarteirões devastados, assolados pela violência e pela AIDS (ela recebe dinheiro de um grafiteiro soropositivo para informar sobre carros abandonados nas ruas).
II
É muito difícil fazer justiça a SUBMUNDO num artigo. O livro é grandioso demais, já pela estrutura complexa. De 1951 ele salta para os anos 90 e daí vai recuando novamente.
O curioso em Don DeLillo é como um escritor que trabalha com uma realidade em ruínas, com lixo cultural, com a ausência de totalidade, pode ter criado um romance total, numa linguagem tão elevada, se o termo não soar muito pomposo.
O próprio título, como o livro inteiro, é cheio de associações, remontando ao título de um suposto filme subversivo com relação ao regime soviético, feito por Eisenstein (o diretor de O encouraçado Potemkim & Ivan, o Terrível) e também ao título de um filme de gângster do cinema mudo. Por outro lado, também alude ao subterrâneo mundo do lixo, área de trabalho do protagonista, Nick Shay, que nos informa: “Minha firma trabalhava com rejeitos. Éramos manipuladores de rejeitos… fazíamos a cosmologia dos rejeitos… O lixo é uma coisa religiosa. Sepultamos os rejeitos contaminados com sentimentos de reverência e terror”.
Nick é um personagem enigmático, que assassinou um homem e foi parar num reformatório, sendo doutrinado por jesuítas (ele também possui, supostamente, a bola da partida de 03 de outubro). Seu irmão, Matt, pensando sobre ele, chega à seguinte conclusão: “Quando Nick morrer, uma equipe de metafísicos examinará a caixa preta dele… mas nada garante que vão encontrar a menor pista que seja”.
Nick e Matrt são personagens fabulosos. Esse é outro mistério de Don DeLillo: como um autor que trabalha com um mundo fantasmagórico e insubstancial pode criar personagens tão incríveis? Já em Ruído Branco, o protagonista (contaminado por uma nuvem tóxica que infesta a região onde mora) e sua família eram inesquecíveis.
Em SUBMUNDO, além dos irmãos Shay, temos Klara Sax, a artista plástica conceitual, com a qual Nick teve um envolvimento aos 17 anos, quando ela ainda era uma dona de casa, esposa do professor de xadrez de Matt, o comovente sr. Bronzini, que termina a vida solitário no Bronx, com sua irmã meio esclerosada, enquanto Klara (aos 70 anos) e seguidores fiéis pintam um cemitério de aviões no deserto. Temos a esposa de Nick, Marian, que tem um caso com o sócio dele e que considera o marido “demoníaco”, procurando desvendar seu estranho passado. Temor Cotter, o garoto negro que, na versão de DeLillo, ficou inicialmente com a bola do jogo, mas temos principalmente seu pai, Max Martin, cuja história atravessa o romance como contraponto da inversão temporal realizada pelo maior dos escritores norte-americanos.
Temos Ismael, o grafiteiro, que além de pichar vagões, também faz incursões homoeróticas no subterrâneo-submundo do metrô, temos a já citada irmã Edgar; temos até um psicopata, o qual assassina pessoas nas estradas do Texas…
III
Paulo Francis, com a superficialidade que lhe era peculiar nos últimos anos, saudou em 1988 A fogueira das vaidades, de Tom Wolfe, com as seguintes palavras: “Nenhum filme ou jornal de tevê tem ou seguiu remotamente, o alcance desta obra, que estabeleceu a primazia da literatura sobre outros meios de comunicação”. A meu ver, Wolfe nem de longe conseguiu isso, mas talvez Francis já estivesse pressentindo que SUBMUNDO estava vindo por aí e encaixar-se-ia perfeitamente nas suas palavras
Vou começar a ler este autor esta semana; estou com as expectativas ao rubro e o seu artigo só veio aguçar ainda mais a vontade de mergulhar neste autor.
Alguma sugestão para primeiro livro? (vou lê-los em inglês)
Barroca
Comentário por Barroca — 10/05/2011 @ 14:32 |
Acho que você poderia começar por “White Noise”, que considero o livro perfeito de introdução ao universo de Don DeLillo. Ou então “Cosmopolis”. Abração, obrigado pelo comentário.
Comentário por alfredomonte — 10/05/2011 @ 16:42 |
Confio; “White noise” será. 🙂
Obrigado pela dica.
Comentário por Barroca — 10/05/2011 @ 16:54
Queria sanar uma dúvida. Ele ainda teria alguma ligação teórica com o humanismo?
Comentário por Bruno Marcondes — 11/09/2011 @ 19:27 |
Oi, Bruno., na minha opinião, sim, apesar de tudo. Há uma estranha emoção “humanista”, mesmo que com um travo na garganta, que nos domina durante a leitura de DeLillo, e como eu já afirmei, seus personagens, por mais que vivam num mundo fantasmagórico e insubstancial, são marcantes e muito fortes para o leitor. Nenhum anti-humanista criaria personagens assim.
De resto, ele é o maior autor da nossa época.
Abração.
Comentário por alfredomonte — 12/09/2011 @ 17:07 |
Obrigado pela resposta.
Eu pergunto isso porque essa questão do humanismo dá um ar meio rançoso às histórias. É como se houvesse algo no homem que, devido à sociedade estar configurada de alguma forma, estivesse perdido. Uma coisa que dá um ar nostálgico, para dizer a verdade. Ainda que não seja.
E ainda tem essa coisa de dizer ‘o mundo é assim’. Tudo está destruído, e não há mais a possilidade da cultura, redenção, ou seja lá o que for. Fica uma coisa meio limitada e até mesmo preconceituosa.
É por isso que eu, quando estudo literatura, ou filosofia também, já que sou aluno, foco mais a questão do conhecimento, ficando com autores mais como Umberto Eco, Borges, Calvino, Nabokov, etc. Eu prefiro uma abordagem mais aberta. O conhecimento é algo bem infinito e, ainda por cima, está em expansão.
Abração.
Comentário por Bruno Marcondes — 13/09/2011 @ 3:05
Bruno, todo grande autor tem um lado digamos “enciclopédico”, em que saberes e conhecimentos de sua época são condensados de uma forma épica ou lírica ou dramática. Um livro como “Submundo” não se limita a constatações desesperançadas, nostálgicas, mas também desvela uma mentalidade cristalizada em valores (ou falta de), em saberes(mesmo que em crise), em uma metafísica, enfim.
É por isso que é um grande romance, não só no sentido da extensão, mas da área de vida que cobre.
Romance: mundo imerso no mundo”, dizia Osman Lins.
Um romance que não revela uma fatia da experiência até então inexplorada não serve para nada, já afirmou Milan Kundera.
E a palavra “conhecimento” é muito, muito ampla.
Abarca até o que não é conhecimento sistematizado.
Abração.
Comentário por alfredomonte — 13/09/2011 @ 15:39
Adorei ler sobre esse autor.Mas gostei ainda mais de ler isso em sua resposta ao Bruno: É por isso que é um grande romance, não só no sentido da extensão, mas da área de vida que cobre.
Romance: mundo imerso no mundo”, dizia Osman Lins.
Um romance que não revela uma fatia da experiência até então inexplorada não serve para nada, já afirmou Milan Kundera.
E a palavra “conhecimento” é muito, muito ampla.
Abarca até o que não é conhecimento sistematizado.
Vou passar a indicar Don DeLillo, orientada pelo seu Blog. Confesso, nunca o li. Tantos livros maravilhosos ainda por ler.
Obrigada, Alfredo! Vou procurar pelos livros.
Abraços,
Eloisa Helena
Comentário por Helena Martins Rodrigues Helentry — 14/08/2013 @ 23:05 |
Valeu, Helena. Acho que o Kundera disse tudo ali, não? Bjs.
Comentário por alfredomonte — 14/08/2013 @ 23:21 |