(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 15 de abril de 1997)
CRASH- Estranhos Prazeres (em tradução do diligente Pinheiro de Lemos), de J.G. Ballard, é um romance desagradável que o grande David Cronenberg conseguiu suavizar, se é que se pode falar assim, na sua adaptação para o cinema.
Obsessivamente fisiológico, Ballard não poupa o leitor de nenhum detalhe constrangedor, de nenhum orifício ou secreção do ser humano, para denunciar a desumanidade que vai tomando conta das pessoas e como a sociedade se consolidou como uma máquina de fantasias que suplantam a própria noção de realidade.
O fisiologismo desagradável de CRASH tem sua razão de ser: o livro trata de pessoas que despertam para a sexualidade possível que pode haver em colisões de carros, em deformações e cicatrizes deixadas por acidentes. É o caso do narrador, James Ballard, de sua mulher, Catherine, e também de Helen, uma médica cujo marido morreu numa colisão com o carro de James; e, principalmente, de Vaughan, o qual se torna uma obsessão sexual de James, e que tem a idéia fixa de morrer num acidente com Elizabeth Taylor.
O casal James-Catherine já era suficientemente bizarro antes mesmo da tara por transas em automóveis avariados ou com mutilados em acidentes. Basta ler a descrição do começo de seu relacionamento: “Durante nossos primeiros atos sexuais eu inspecionava deliberadamente cada orifício que podia encontrar. Passava a língua por suas gengivas, na esperança de sentir algum fragmento de vitela retido entre os dentes; enfiava a língua por sua orelha, na esperança de encontrar um vestígio do gosto de cera; examinava suas narinas e umbigo, e, por último, a vulva e o ânus. Tinha de meter o dedo até o fundo antes de extrair matéria fecal, um vestígio marrom na unha”.
Portanto, a escatologia permeia o universo de Crash (e de Ballard em geral), independentemente das taras com automóveis e acidentes. O que enfraquece consideravelmente o romance é que essa escatologia está de mãos dadas com um evidente moralismo.
Se por um lado, o moralismo impede que tudo seja mera pornografia provocativa, por outro lado limita o impacto de náusea e mal estar que o livro poderia ter num sentido mais amplo, de comentário à sociedade pós-industrial. O comentário que Ballard tinha a fazer já fica óbvio desde o princípio e CRASH apenas repisa à exaustão uma idéia básica: o horror que é as pessoas erotizarem seus artefatos tecnológicos.
Da maneira como Ballard mostra tudo, exagerada e caricata, o leitor permanece no mesmo ponto em que já estava ao começar a ler o romance: uma postura de relutância repugnada ao imaginar atos físicos tão abjetos e degradantes, mas sobretudo esquisitos, quase cômicos.
A bizarria dos personagens e o tom com que o autor de Império do Sol descreve tais atos impedem o leitor de ir mais a fundo e pensar numa dimensão maior, de uma sociedade doentia e cada vez mais dependente de suas máquinas, de modo que elas parecem extensões do nosso corpo, uma idéia já explorada inclusive por Cronenberg em seu clássico Videodrome;
No final, o jogo de Ballard de nos colocar em contato com as fantasias e realizações da libido do seu grupinho tarado parece muito conceitual e muito repetitivo. Coube a Cronenberg (que já fizera outra esplêndida adaptação de uma obra famosa e nada agradável, The Naked lunch[1], de William Burroughs) “limpar” um pouco a área, numa trama que se adaptou surpreendentemente bem ao seu estilo frio e asséptico.
Ballard tem a mão pesada demais, como provou num de seus livros recentes, The Kindness of women[2] (CRASHé de 1973). Ele não só quer mostrar uma realidade desagradável e repugnante, mas faz seu estilo compartilhar do desagradável e repugnante. Como Oliver Stone, ele quer rapidamente provar ao público que está condenando tudo aquilo, e todas as sutilezas se perdem.
É por isso que muitas vezes o texto de CRASH, ao contrário do filme, parece um papo-cabeça ocioso, bem dentro de uma idéia (já meio datada) de arte conceitual: “Quando Vaughan entrou com o carro no pátio de um posto de gasolina, a luz vermelha do cartaz de cima iluminou aquelas fotografias granulosas de ferimentos terríveis, uma sucessão de fotografias de pênis mutilados, vulvas cortas e testículos esmagados. Em várias fotografias, a origem do ferimento era indicada pelo detalhe da parte do carro que o causara: ao lado da fotografia de um pênis bifurcado, havia o relevo de uma alavanca de freio de mão; por cima do close de uma vulva toda avariada, havia a copa do volante com o emblema do fabricante. Essas uniões de genitálias dilaceradas com partes de carroceria e do painel do carro formavam uma série de módulos perturbadores, unidades numa nova moeda corrente de dor e desejo”.
No prefácio, Ballard afirma que o papel do escritor mudou radicalmente: “O escritor não sabe mais nada. Não tem postura moral. Oferece ao leitor o conteúdo de sua própria cabeça, um conjunto de opções e alternativas imaginativas… Tudo o que pode fazer é projetar várias hipóteses e testá-las diante dos fatos…”
Embora CRASH seja um livro indubitavelmente importante, ele desmente tudo o que está sendo afirmado na passagem acima. Apesar de ter dado seu nome ao narrador, sente-se o tempo todo que ele condena o mundo que James Ballard, o personagem, cria á sua volta. J.G. Ballard não se livrou suficientemente de sua postura moral (embora, valha-nos Deus, não deixe de nos oferecer o conteúdo de sua cabeça) para ser o Marquês de Sade da nossa era pós-moderna. Será isso bom ou ruim?
[1] Aqui intitulada comicamente de Mistérios e Paixões.
[2] Aqui intitulado, vai saber o porquê, de Sombras do Império.
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