(escrito especialmente para o blog, 23 de agosto 2012)
Zulmira: Foi um altíssimo negócio essa cartomante. Agora eu sei de tudo. Essas dores nas costas… Olha: hoje eu passei o dia inteiro com o nariz entupido…
Tuninho: Gripe!
Zulmira: Gripe aonde? Macumba!
Tuninho: Sossega!
Zulmira: Sim, senhor! Alguma macumba que essa cara me fez! Aposto!
Tuninho: Mas a mulher é protestante!
Zulmira: Protestante, diz você! Mas duvido! Fingimento, máscara. Vou-te dizer o seguinte: Glorinha tem parte com o Demônio! Tão cínica que diz apenas o seguinte—vê se pode—que a mulher que beija de boca aberta é uma sem-vergonha. Pode ser o marido, pode ser o raio que o parta mas é uma sem-vergonha…
(…)
Zulmira: (…) A mulher de maiô está nua. Compreendeu: Nua no meio da rua, nua no meio dos homens!
(…)
Tuninho: Mas como?—perguntei eu à minha mulher—você tem nojo de seu marido? Zulmira rasgou o jogo; e disse assim mesmo: Tuninho, se você me beijar na boca, eu vomito, Tuninho, vomito!”
PRIMEIRO ATO
Tuninho: (…) Vai ser uma tragédia em trinta e cinco atos!
(…)
Zulmira: Eu vou morrer… Sei que vou morrer. Já não sou mais deste mundo.
Zulmira: Eu sou a morta, que pode ser despida…
Oromar: Estou com uma pena danada do Tuninho… A mulher morre na véspera do Vasco x Fluminense…
Nelson Rodrigues foi outra descoberta que fiz graças à série da Abril Cultural Literatura Comentada. Mais ou menos nessa época (início dos anos 1980, quando ele acabara de morrer, aos 68 anos), a Globo exibiu na série Aplauso uma adaptação de Vestido de Noiva, estrelada por uma então empenhada Suzana Vieira (ou seja, estamos muito longe da celebridade global que parece mais interessada atualmente em aparecer nas fofocas de revistas como a Caras e no folclore humorístico a respeito da sexualidade das mulheres mais velhas1).
Nem sei dizer se a adaptação era boa, o que interessa é que veio a calhar como descoberta do universo rodriguiano, função que jamais seria cumprida pela sequência de versões cinematográficas indigestas lançadas pouco antes ou pouco depois: A dama do lotação; Bonitinha, mas ordinária; Engraçadinha (alguém caiu no equívoco de achar que Lucélia Santos era a atriz certa para o autor); Álbum de família; Os sete gatinhos (o Beijo no asfalto de Bruno Barreto era o mais comedido daquela safra toda, porém frio e sem vida, e mais uma vez se caía no erro de transformar o exagero expressionista de Nelson Rodrigues em caricatura histriônica, na composição de Tarcísio Meira). Neville d’Almeida e Braz Chediak (malgrado o filme de Haroldo Marinho Barbosa a partir da história de Engraçadinha ser igualmente um horror) passaram a ser um anátema para mim, e pareciam incompatíveis Nelson Rodrigues e o cinema. Ainda não conhecia filmes mais antigos, bem melhores, caso de A falecida, de Leon Hirszman, e Toda nudez será castigada e O casamento, de Jabor. Mas tive a sorte de ver nos palcos que o seu texto podia ser representado sem ridículo, com o espetáculo de Antunes Filho, Nelson 2 Rodrigues.
Em resumo, passei os anos 1980 admirando intensamente algumas peças do autor de Vestido de Noiva (particularmente esta, definida por Sábato Magaldi como “psicológica”, assim como Valsa número 6), e as peças denominadas míticas; nunca fui especialmente fã das “tragédias cariocas”, com as exceções de A falecida e Beijo no asfalto ). Tal era o contorno de Nelson Rodrigues para mim naquela década.
Nos anos seguintes, começaram a ser republicadas sistematicamente obras de gêneros diversos, e então veio o enfado quanto ao mundo rodriguiano. Acho que foi a hipertrofia de títulos; porém, mais ainda, foi a hipertrofia da figura de Nelson, aquela babação de ovo como se ele fosse um oráculo ao qual recorriam todos aqueles luminares da cultura carioca voltada para o próprio umbigo e para uma faixa limitadíssima de praia e areia. Um pouco também como o que acontecia com Borges (em outro sentido, claro), que parecia nunca ter dito uma bobagem ou soltado uma blague na vida, tudo o que dizia parecia ser justo, lapidar, oracular. E no final das contas ele fora um homem desagradável (como não o conheci pessoalmente, como seus discípulos, só posso me basear nos seus depoimentos gravados ou transcritos), irritante e rançoso!
Muito desse enfado com a indústria Nelson Rodrigues ainda persiste. Acho um porre o (provinciano) culto que lhe dedicam os machos da espécie-formato (reduzido) praias cariocas. Nunca vi uma mulher que lhe fizesse loas.
Foi a televisão que salvou tudo novamente. Por incrível que pareça, enquanto no palco e nas telas Nelson Rodrigues, Antunes Filho à parte, virava uma coisa risível, uma mistura de David Lynch com Miguel Falabella, de Eugene O´Neill com Jorge Fernando ou Guel Arraes, os seriados globais me faziam descobrir as preciosidades rodriguianas além da dramaturgia, seus folhetins inclassificáveis e apaixonantes, Meu destino é pecar & Asfalto selvagem, e principalmente as histórias-crônicas cariocas de A vida como ela é, impecavelmente transpostas para a tevê (e bem interpretadas).
E, é claro, cada releitura do seu teatro, confirmava: não importa a hagiografia de uma determinada subcultura e geração, mais que a figura de Nelson Rodrigues importa o mundo que ele criou para os palcos.
SEGUNDO ATO
Tuninho: Sabe por que a tal da Glorinha é o maior pudor do Rio de Janeiro? e por que toma banho de camisola? e não vai á praia? e tem nojo do amor? sabe?
Zulmira: Fala, criatura!
Tuninho: Porque teve câncer e tiveram de extirpar um seio…”
Havia uma edição do Círculo do Livro que eu adorava, pois continha Álbum de família, A falecida e Vestido de noiva; ou seja, era quase um “portable” Nelson Rodrigues, com o melhor do melhor do seu teatro (só faltou Senhora dos afogados, que nunca foi tão famosa quanto as outras2).
A falecida3 poderia ser uma crônica de A vida como ela é. O que impressiona na peça é a economia de meios cênicos (as deixas, aliás, são insistentes a respeito4), de personagens, e sobretudo da ação dramática.
Como nas peças “míticas”, tudo é muito concentrado, de tal forma que se chega quase a um casal carioca genérico, embora se chamem Zulmira e Tuninho (mas a mãe dela é chamada de Dona Fulana). E a peça mostra radicalmente a solidão desse casal, com os universos afetivos e os investimentos libidinais isolados de cada um, a fêmea e o macho (e novamente, aqui muita gente poderia tachar a ação dramática e a caracterização dos protagonistas de caricaturais e simplistas). É a “guerra conjugal” no palco, com força igual à dos contos de Dalton Trevisan5.
O mundo dela é o da procura das cartomantes, das rivalidades femininas, das vizinhas, do adultério, da obsessão com as mazelas do corpo (e a preocupação com o próprio enterro, com a escolha do melhor caixão); o dele é o futebol, o bilhar, as apostas, a afirmação enquanto macho (que sofrerá um rude golpe com a descoberta das traições da esposa, e por isso a vingança final, quando—de posse do dinheiro da chantagem que ela mesma lhe proporcionou, antes de morrer6—compra o caixão mais fuleiro para enterrá-la). E, pairando sobre eles, o mundo da contravenção, do jogo do bicho.
Enfim, admire-se (como eu) ou não (os que acham tudo caricato) é um microcosmo de uma determinada feição do Rio de Janeiro tornada quase paradigmática,por causa das figuras elevadas ao imaginário como o proverbial bicheiro, e símbolos populares como o estádio do Maracanã.
Uma coisa que eu adoro nas falas da peça é o uso e abuso de expressões populares: “estou desempregado e outros bichos. Quer dizer, na última lona”; “Até aí morreu o Neves”; “ia lavar a égua”; “Estou crente que aquela besta vai descobrir coisas do arco-da-velha no meu pulmão”; “Entra de sola, que mulher gosta é disso”; “tudo isso é batata ou golpe?”; “Será o benedito?”; “Agora é tarde e Inês é morta”; “Está na hora da onça beber água”, “É mesmo da fuzarca”…
NOTAS
1 Naqueles tempos pré-históricos, ela também estrelou uma das raras telenovelas das quais guardo uma lembrança muito forte: A sucessora.
2 Ela se tornou uma referência maior, creio eu, de 2008 para cá, por causa das montagens recentes.
3 No exemplar do Círculo, a data é 1954, mas na biografia O anjo pornográfico, de Ruy Castro, consta 1953 (inclusive da primeira montagem, com Sônia Oiticica como Zulmira, e Sérgio Cardoso como Tuninho.
4 Por exemplo:
“Os personagens é que, por vezes, segundo a necessidade de cada situação, trazem e levam cadeiras, mesinhas, travesseiros que são indicações sintéticas dos múltiplos ambientes”.
5 Similar ao mundo de Trevisan há até os fetiches corporais entre homem e mulher. Como quando Tuninho diz a Zulmira: “Vem espremer o cravo grande das costas”. Ou quando o bicheiro Pimental conta sua primeira relação com Zulmira, num banheiro, da qual saiu “sujo de batom até a alma”.
E Rodrigues sempre está atento ao sensacionalismo (espetacularização do cotidiano), como levará ao limite extremo em Beijo no asfalto. A filha do bicheiro (amante de Zulmira) é atropelada:
Funcionário: (…) a garota saiu do colégio, atravessou a rua e foi esmagada entre um bonde e um ônibus. Sanduíche autêntico!
Timbira: Morreu:
Funcionário: Se morreu?! Está feito uma papa! Sabe o que é papa? papinha?
6 “Assim que eu morrer, pega um táxi, vai à casa dele, ao escritório, seja lá onde for, e diz o seguinte: que eu morri. Mas que, antes de morrer, pedi que ele me pagasse um enterro de quarenta mil cruzeiros… Ele te dará dinheiro… E não diz que é meu marido…”
Deixe um comentário