MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

25/08/2012

A obra maior de Nelson Rodrigues: SENHORA DOS AFOGADOS


Paulo: (…)nós temos a loucura  na carne, a loucura e a morte…

Misael: Um Drummond não pode amar nem a própria esposa. Desejá-la, não; ter filhos… A cama  é triste para os Drummond…

D.Eduarda: Meu próprio marido me possuiu sem me acariciar…

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 21 de agosto de 2012, sem as notas de rodapé)

Pensando em como homenagear o centenário de Nelson Rodrigues (nascido em 23 de agosto de 1912), e levando em conta a multiplicidade de sua produção —romances folhetinescos, crônicas, memórias[1] —, apesar de uma certa superestimação tão ao gosto da autocentrada cultura carioca (embora ele fosse de origem pernambucana), logo percebi que seria tarefa vã dar conta de todos os aspectos.

Mesmo na área em que sua contribuição revela-se mais essencial (pois ainda é nosso maior dramaturgo), como abordar 17 peças, boa parte delas extremamente marcante, com um expressivo número de adaptações para o cinema (a maioria, horrorosa) e para a televisão? Afinal, com a sua segunda obra para o palco, Vestido de noiva (1943), ele se valeu de um experimentalismo formal que até hoje impressiona e coloca a peça entre os grandes momentos do alto modernismo (tanto que é praxe comparar seu impacto sobre o nosso teatro com o de Cidadão Kane no cinema comercial norte-americano)

E Vestido de noiva só era o início do percurso. Em uma sequência inacreditável (de 1946 a 1949), escreveu as quatro peças alucinadas e alucinantes, hoje arroladas como míticas (no segundo volume do Teatro Completo, organizado por Sábato Magaldi), que representam o lado mais radical do seu teatro: Álbum de família, Anjo negro, Senhora dos afogados e Doroteia.

A mais poética delas, possivelmente a sua obra-prima suprema, Senhora dos afogados, também é a mais comentada em anos recentes, pois os dois encenadores de maior renome do país, José Celso Martinez Correa e o grande Antunes Filho, resolveram montá-la quase que ao mesmo tempo, em 2008. O trabalho de Antunes é admirável e rigoroso, o de Martinez Correa não veria nem amarrado, pois sempre tive uma aversão incontornável pelo seu dionisismo institucionalizado (creio que até financiado por verbas públicas; assim, é fácil ser orgíaco).

Quando a peça começa, os Drummond (uma família de três séculos, com mulheres que se gabam da fidelidade conjugal: “nunca houve um adultério” por parte de uma esposa do clã[2]: “Pudor têm todas as mulheres da família”) choram a morte por afogamento de Clarinha. Ao mesmo tempo, prostitutas do cais interrompem suas atividades para lamentar o 19º. ano de impunidade do assassinato de uma das suas.Acontece que o assassino é Misael Drummond, pai de Clarinha: ele matara a “mulher da vida” com quem tivera um caso porque ela insistia em experimentar o leito conjugal antes da esposa (era o dia do seu casamento).

Antes mesmo de saber que a sua filha morrera, Misael—num banquete em sua homenagem—vê o fantasma da prostituta morta lhe aparecer, e foge da cerimônia: “Ela tornou o banquete maldito… Todos sentiram que havia uma morta entre os convidados. Eduarda, quando essa mulher apareceu, houve no banquete um cheiro de mar…”

   Enquanto isso as duas Drummond sobreviventes (há uma terceira, a avó, que ficara louca ao testemunhar o crime do filho), Eduarda e Moema, mãe e filha, se digladiam em torno da questão do pudor e da honra da mulher, núcleo do universo burguês tradicional tão bem caracterizado na obra rodriguiana, hostilizando-se devido a um ódio primordial. Moema, que gostaria de viver sozinha com o pai (e por isso matou as irmãs), urde um plano de forma a fazer com que a mãe o traia com o próprio noivo, um ex-marinheiro que na verdade queria seduzi-la para se vingar do pai (de ambos, já que ele é o fruto dos amores de Misael com a prostituta assassinada)…

Estamos aqui, já pelas ligações incestuosas entre os personagens, e pela obsessão com os polos da respeitabilidade e da transgressão, no cerne das pulsões arcaicas, no primordial, nos confins do lógico, do racional, do consciente. Todas as amarras foram rompidas, e os personagens se movem num tempo verdadeiramente mítico, que só pode ser o do inconsciente. Não é a toa que a peça se aproxima das tragédias gregas, em que os clãs familiares se entredevoram num inferno de culpas e desmedidas. Evocando a mãe assassinada, o Noivo diz (respondendo à afirmação da Vizinha de que ela devia ser linda): “Muito. E não sei há quantos anos não envelhece nada; não envelhecerá nunca. A mesma idade sempre—nem um minuto a mais, nem um minuto a menos…” E ainda: “Os outros podem morrer. Tudo mais pode morrer. Menos minha mãe” (evidentemente o fato de ela já estar morta não tem a menor importância na economia psíquica do personagem).

Mas isso ainda é dizer pouco, uma vez que nunca Nelson Rodrigues, nem mesmo em Vestido de noiva e Anjo negro, nem nas posteriores A falecida (1953) e Beijo no asfalto (1960), escreveu ou escreveria não apenas falas da mais absoluta beleza e precisão, nada faltando, nada sobrando, como também  “deixas” de um lirismo único, que no teatro contemporâneo só se encontra talvez num Eugene O´Neill (“Só estão em cena os espectrais vizinhos. Cochicham entre si. É ainda a casa dos Drummond, sempre a casa dos Drummond”; outros exemplos: “Em cena, também os vizinhos. São figuras espectrais. Um farol remoto cria, na família, a obsessão da sombra e da luz. Há também um personagem invisível: o mar próximo e profético, que parece estar sempre chamando os Drummond, sobretudo as suas mulheres”).[3]

É lógico que as revelações bombásticas de crimes e disposições incestuosas beirariam o cômico não fosse a genialidade do autor de Toda nudez será castigada (1965), que domou o excesso com a perícia cirúrgica do seu texto. Todas as vezes que o li , não conseguia imaginar como seria no palco, que tom poderia ser adotado para não ficar como nas ridículas versões de cinema (especialmente a de Álbum de família, escrita na mesma toada), as quais resvalavam para o chanchadesco. Foi preciso esperar por Antunes Filho para constatar que sim, era possível, e que o Nelson Rodrigues de Senhora dos afogados é um ponto-limite no dizer teatral e na forma cênica.

Em tempo:  a peça foi interditada pela censura em 1948, liberada apenas em 1953. Na estreia (montagem dirigida por Bibi Ferreira), um ano depois,  houve vaias, e a estreante Nathalia Thimberg, aterrada com o tumulto, testemunhou o autor enfrentando a plateia. Nelson Rodrigues, longe do tom das homenagens do seu centenário, era tido então como tarado e degenerado. [4}

[3


[1]  Considero deliciosos (num sentido perverso) Meu destino é pecar & Asfalto selvagem, e acho o melhor Nelson Rodrigues, depois das peças, o de A vida como ela é. A isso se resume meu conhecimento da sua obra, pois não tenho muita paciência para o lado, tão exaltado pela turma de Ruy Castro, Arnaldo Jabor & Cia, de polemista e paladino das frases politicamente incorretas. Isso é coisa de província.

[2]Misael:  E eu que pensei que nossa família fosse casta.(…) Se tua mãe foi infiel, as outras mulheres da família também…

Moema: Mas minha mãe era uma estrangeira… Não tinha o rosto dura das Drummond (…) Nossos espelhos a estranhavam….

[3] Nas sua bela introdução ao volume das peças míticas, Sábato Magaldi desenvolve uma minuciosa aproximação de Senhora dos afogados com a obra-prima de O´Neill, Electra Enlutada, afirmando ser a peça de Nelson uma espécie de extrapolação ou paráfrase da peça do autor norte-americano.

[4] Devo essas informações à biografia de Ruy Castro, O anjo pornográfico.

2 Comentários »

  1. Desejos reprimidos, perversões, loucura; a fragilidade da alma humana retratada com maestria numa obra atemporal.

    Comentário por Marilia Arnaud — 26/08/2012 @ 0:26 | Responder

    • Obrigado pelo comentário, ainda mais numa especialista em “coisas que nunca terminam”. Abraço, Alfredo Monte

      Comentário por alfredomonte — 26/08/2012 @ 13:33 | Responder


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