MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

09/08/2012

O MÁGICO QUE TIRA EXISTÊNCIAS DA CARTOLA: Hermann Hesse (1877-1962)

Filed under: Homenagens — alfredomonte @ 12:27
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(escrito especialmente para o blog em agosto de 2012)

“As pessoas dizem que não tenho noção de realidade (…) realmente me falta o respeito à realidade (…) é aquilo com que a pessoa não deve, em circunstância alguma, ficar satisfeito, aquilo que a pessoa não devem em circunstância alguma adorar e reverenciar pois é acidental, o sobejo da vida…”

“A concepção mágica da vida sempre me foi cara ao coração…”

  Hermann Hesse morreu em 9 de agosto de 1962, aos 85 anos (nascera em 1877).

   Já que estou mencionando datas, delimitações cronológicas, vários acontecimentos seminais de 1922 estão completando 90 anos: temos a Semana de Arte Moderna, Ulysses, The waste land, só para ficar nos casos mais óbvios.

   Em 1922, Hesse publicou um romance que cristalizou a “virada” em sua obra que eclodira em Demian (1919): Sidarta. Hoje em dia quase ninguém colocaria o livro do grande escritor alemão entre os grandes eventos literários daquele célebre ano. Mas décadas depois, na efervescência libertária dos anos 1960, o livro se transformaria num ícone da procura de caminhos alternativos ao materialismo ocidental, e Hesse um guru.

   Novamente décadas depois, Sidarta parece ter seguido o mesmo caminho de O pequeno príncipe, O grande Meaulnes (O bosque das ilusões perdidas) e outros livros que “fizeram a cabeça” de inúmeras pessoas e depois são relegados a uma categoria meio embaraçosa, entre a literatura cor-de-rosa e piegas, a auto-ajuda, o esoterismo e o bicho-grilismo,  e que são colocados na mesma pacotilha de coisas mais duvidosas como Fernão Capelo Gavoita ou O profeta (Gibran). E nada mais injusto, no caso do romance de Hesse, relato límpido, profundo e perfeito, aqui no Brasil magnificamente traduzido (por Herbert Caro).

  Li pouco da produção anterior de Hesse a Demian; sem ter feito uma revisão, penso que ele não entraria para a história da alta literatura do século XX por Peter Camenzind ou Rosshalde.

   E também demorei para apreciar verdadeiramente as qualidades de Demian e Sidarta. Comecei a amar (acho que posso utilizar esse verbo sem cair na pieguice) a obra de Hermann Hesse com a leitura de O jogo das contas de vidro, um dos romances que mais li dos anos 1980 para cá, e indubitavelmente um dos livros que considera absolutos. Ajudou muito eu ter descoberto, mais ou menos na mesma época,  outro livro-chave (pelo menos, para mim), a Correspondência entre amigos, cujo interlocutor era Thomas Mann (esse sim, o livro que li mais vezes em toda a vida, ao ponto de sabê-lo quase de cor).

  Não sou tão apaixonado por Hesse como sou por Mann, entretanto acho que chega bem perto a minha admiração por esse autor às vezes tão irritante, tão idiossincrático e que, ainda assim, cresce a cada releitura. Caso tivesse que fazer a opção da ilha deserta, levaria, claro, O jogo das contas de vidro, mas com uma pontada no coração pensando em Narciso e Goldmund, Viagem ao Oriente, Sidarta, Demian. Quanto a O Lobo da Estepe creio que é o mais arrojado e complexo de seus livros, do ponto de visto propriamente ficcional e literário, aquele onde ele mais ousou e mais está atrelado aos grandes feitos modernistas.

   Agora: entre as edições brasileiras da obra de Hesse, há uma meio espúria (já que feita a partir de uma versão em inglês) lançada nos anos 1970 pela Artenova (a tradução é de Affonso Blacheyre), editora cujos exemplares literalmente se desfazem durante a leitura, pois as páginas vão descolando. Todos os livros que eu possuo da Artenova tem de ser manuseados com muito cuidado, para que páginas não se percam ou fiquem embaralhadas.

   Dando uma folheada, (quase uma revoada de folhas), tentando abstrair a capa medonha,  no meu exemplar de MINHA VIDA [Autobiographical writings], apesar desses percalços da chinfrinzice editorial e de um texto brasileiro que é uma versão de uma versão, fiquei novamente maravilhado com a beleza de certos trechos: Theodore  Ziolkowski (também responsável pela Correspondência Hesse-Mann, lançada no Brasil pela Record, em tradução de Lya Luft) reuniu 12 textos autobiográficos de diversas épocas, feições e níveis de qualidade. Nenhum deles é desperdício de tempo, mas três são especialmente lindos.

  O meu favorito, de longe, é Hóspede do Balneário (1924). Mas como esquecer A infância do mágico (1923)ou Autobiografia resumida (1925)? Este último é muito curioso e instigante: até certo ponto, Hesse parece estar nos contando de uma forma poética e concentrada os caminhos da sua vida, mas em determinado ponto, assim como fez com seus personagens nos romances, ele inventa um destino biográfico para si, fazendo um exercício de biografia conjetural. Assim, por exemplo, a persona, ou eu lírico, que nos narra sua autobiografia mostra como anelou por ser poeta desde a adolescência (“A questão era a seguinte: a partir do meu décimo terceiro ano de idade tornou-se claro que eu queria ser poeta ou nada”). Vocação assumida e até bem sucedida enquanto carreira profissional, por incrível que pareça, de repente uma terrível cisão interna, que a Primeira Guerra acarretou,fez com que abraçasse um pacifismo revoltante para seus concidadãos e amigos, amargando um terrível isolamento (“vi-me denunciado como traidor”).

   O sofrimento e os conflitos, tanto externos quanto interiores (faz um severo exame de consciência, “obrigado a procurar a causa de meus sofrimentos não externamente, mas dentro de mim”) desemboca numa radical transformação pessoal. Nós sabemos, por Demian, que isso aconteceu de fato com Hermann Hesse.  Mas ele transforma seu poeta num pintor, envolvido também com magia, que acaba sendo preso (“Com mais de setenta anos de idade, logo após ter sido escolhido por duas universidades para receber graus honorários, fui levado a julgamento por ter seduzido uma jovem usando mágica”). Na prisão, ele pinta  uma paisagem (atravessada por um trem) na parede da cela e a fantasia biográfica vai se encaminhando para um fim digno de Borges:

“Foi diante desse quadro em minha cela que eu me achava um dia, quando os guardas chegaram mais uma vez, com seu chamamento tedioso e tentaram arrancar-me de minha atividade feliz. Nesse momento senti cansaço e algo como uma revolta contra toda aquela azáfama, aquela realidade brutal e sem espírito. Se não me permitiam ficar com meu inocento jogo de artista, sem ser perturbado, nesse caso devia recorrer àquelas artes mais severas a que havia dedicado tantos anos da vida. Sem a mágica, aquele mundo era intolerável.

   Chamei ao espírito a fórmula chinesa, mantive-me por um minuto com a respiração suspensa e me libertei da ilusão da realidade. Depois solicitei afavelmente aos guardas que fossem pacientes por mais um momento, já que tinha de entrar em meu quadro e procurar alguma coisa no trem. Eles riram como costumavam fazer, pois me  consideravam mentalmente desequilibrado.

   Foi quando me tornei pequeno e entrei em meu quadro, embarquei no trenzinho e segui nele para o túnel pequenino e negro. Por algum tempo a fumaça de fuligem continuou a ser visível, saindo do buraco redondo, depois se dispersou e desapareceu, e com ela todo o quadro e eu com ele.

   Os guardas ficaram para trás, tomados de grande embaraço”.

   Esse texto fantasioso e notável prolonga a descrição de infância de Infância do Mágico, onde são acrescentados aos detalhes reais (ele evoca os pais, o avô de uma forma extraordinária) elementos “fantásticos” que, na verdade, reproduzem as percepções de qualquer criança imaginativa (“Duradouro foi o meu sonho infantil de que o mundo me pertencia, que somente o presente existia, que tudo se achava arrumado em volta de mim para tornar-se um belo brinquedo… Tudo era prenhe de realidade e tudo era prenhe de mágica, os dois cresciam conscientemente lado a lado, ambos me pertenciam… Como era diferente o aspecto da nossa porta dianteira, o barracão do jardim e da rua em uma noite de domingo, confrontado com a manhã de segunda-feira! Que semblante inteiramente diverso o relógio da parede e a imagem de Cristo na sala de visitas apresentavam no dia em que o espírito do vovô dominava, em confronto com aqueles dias quando dominava o espírito de meu pai, e como tudo isto mudava outra vez e por completo naquelas horas quando não havia mais o espírito de pessoa alguma, senão o meu próprio, dando às coisas sua assinatura, quando minha alma brincava com as coisas e lhes conferia nomes e significados novos… Como era pouco o que se mostrava fixo, estável, duradouro…”).

  Em 1924, o futuro amigo íntimo (a essa altura, longe disso; apesar de se conhecerem há muitos e muitos anos) Thomas Mann lançava A montanha mágica. Hesse, por sua vez, sofrendo com a ciática, passou algumas semanas na estação de águas de Baden. Escreveu então uma longa e apaixonante crônica da sua estadia, que parece ser a contrapartida miniatural do enciclopédico e ciclópico livro do colega. Uma joia rara, desde o momento em que ele desce na estação, reconhecendo seus “companheiros” e “concidadãos” no universo da ciática, ao mesmo tempo sentindo-se superior por poder andar um pouco mais desembaraçadamente, sem tantos indícios de invalidez: “Via-me cercado de longe e de perto por colegas sofredores, competidores junto aos quais eu era vastamente sofredor. Que sorte a minha ter vindo a tempo, ainda na primeira etapa de uma ciática camarada, ainda com os primeiros sintomas débeis de artritismo inicial! Fazendo a volta e apoiado na bengala fiquei olhando o leão-marinho por algum tempo, com aquela sensação conhecida de satisfação, provando que a língua não pode ainda exprimir os processos psicológicos, pois os opostos linguísticos, maldade e solidariedade, aqui se encontram unidos com a maior profundeza”.

   A partir daí não há uma página em que o leitor não  tenha um trecho deslumbrante em sua percepção da natureza humana, dos próprios processos íntimos neuróticos (a insônia e seus tormentos, e a premente, mas quimérica necessidade de encontrar um quarto de hotel “tranquilo”). Enfim, uma obra-prima. O que eu posso fazer de melhor é recomendar insistentemente a leitura desses Autobiographical Writings nesse aniversário da morte de Hermann Hesse.

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4 Comentários »

  1. Caro Amigo,
    Fiz uma pequena homenagem a você em nossa comunidade “Blogs Antigos”, com o post “Redescobrir Hermann Hesse”. Veja link abaixo:
    https://plus.google.com/103334966744194030988/posts/9BzbDmufaKc
    Ao visitar, sinta-se à vontade para vir fazer parte da comunidade, o que nos deixará muito honrados.
    Abraços,
    Beto.

    Comentário por Adalberto Queiroz — 21/09/2013 @ 21:42 | Responder

    • Puxa vida, obrigado, fico muitíssimo feliz. Abração.

      Comentário por alfredomonte — 21/09/2013 @ 22:13 | Responder

      • Você merece, caro Monte, pelo excelente (e contínuo) trabalho de divulgação da boa Literatura.
        Abraços do BETO.

        Comentário por Adalberto Queiroz — 11/10/2013 @ 21:24

      • Você merece!

        Comentário por Adalberto Queiroz — 21/12/2013 @ 16:22


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