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(resenha publicada originalmente em 03 de novembro de 2007 em A TRIBUNA de Santos)
A adaptação cinematográfica de Hector Babenco colocará em merecida evidência O Passado (El pasado, 2003), esplêndido romance argentino, muito bem traduzido (por Josely Vianna Baptista) e editado (pela Cosac Naify) aqui no Brasil. Nele, Alan Pauls narra como Rímini e Sofía se separam, após 12 anos de casamento, e como a sombra da presença dela paira sobre a vida que ele constrói com outras mulheres. Personalidade peculiar e intensa, ao longo dos anos ela se transforma numa daquelas pessoas “dançadas”, folclóricas, capaz de intervenções aberrantes na vida de Rímini (chega até a roubar seu filho de um ano e meio).
Na coletânea de ensaios Formas Breves, o compatriota de Pauls, Ricardo Piglia, comenta uma curiosa recorrência que ele detecta nos “melhores romances argentinos” (Adán Buenosayres, O Jogo da Amarelinha, Os Sete Loucos) e igualmente em narrativas curtas memoráveis como O Aleph, de Borges, do objeto mágico que concentra todo o universo e que substitui a mulher que se perdeu: “Trata-se na realidade da tradição do tango. O homem que perdeu a mulher olha o mundo com olhos metafísicos e extrema lucidez. A perda da mulher é a condição para que o herói do tango adquira essa visão que o distancia do mundo e lhe permite filosofar sobre a memória, o tempo, o passado, a pureza esquecida, o sentido da vida. O homem ferido no coração pode, por fim, olhar a realidade como ela é e perceber seus segredos.”
O Passado resgata e revitaliza essa tradição e Sofía cumpre essa função, de ser o tango na vida de Rímini, enquanto ele fica obcecado, a cada fase, por um “objeto mágico” (a cocaína, o filho).
Todavia, nada disso seria tão absorvente não fosse a prosa enfeitiçante, luxuriante, com que Pauls resgata o romance atual do esgotamento das formas e da pulverização da narrativa. Na duas últimas décadas, na ficção hispano-americana talvez só Detetives Selvagens, de Roberto Bolaño tenha alcançado (e superado) tal plenitude, exuberância e fôlego.
“Rímini pensou em sua rigidez, em como lhe custava admitir que os acidentes das coisas participavam das coisas e que a lógica das coisas era a descontinuidade, o vaivém, a alternância ritmada de momentos acidentais mais ou menos arbitrários e momentos de estabilidade mais ou menos previsíveis”. Escolheu-se aqui esse pequeno trecho da página 254, mas O Passado é o tipo de livro que nasceu para que dele se tirem citações, com as suas definições, colocações e imagens alucinantemente exatas. Fala-se muito em Proust e Cortázar com relação a ele. Também poderia ser lembrada Marguerite Yourcenar, a qual tinha o raro poder de resumir um sentimento, uma sensação, uma atividade, numa fórmula mágica e precisa.
Ler O Passado (mesmo que os mergulhos de cabeça de Rímini em certos “objetos mágicos” sejam exasperantes às vezes, mesmo que Sofía irrite em suas aparições) é um prazer, só que um prazer paradoxal: o ritmo narrativo é perfeito e nada lento; em contrapartida, há tantos achados a cada momento que a leitura se retarda e parece que a cada parágrafo se chegou a um ponto insuperável e definitivo e à prova cabal de que a literatura é inigualável quanto a proporcionar tal sensação.
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