NORMAN MAILER (1923-2007)
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 17 de novembro de 2007)
Nos últimos dias morreram Ira Levin e Norman Mailer. O primeiro era representante da excelência que o best seller podia alcançar, com as tramas engenhosas de livros como O Bebê de Rosemary ou Os Meninos do Brasil; já o segundo é um dos escritores fundamentais da ficção do século XX.
Quando Os nus e os mortos apareceu em 1948, logo afirmou Mailer como um dos principais nomes de uma geração ímpar (Truman Capote, Saul Bellow, J.D. Salinger, William Styron, Paul Bowles, Gore Vidal, entre outros). É um livro de ímpeto caudaloso, polifônico, feroz, com uma cena que nunca me saiu da cabeça: dois soldados carregando um companheiro, que já está morto, entretanto eles nem mais ligam para isso, já perderam a noção de objetivo e da sua própria humanidade.
Há uma grave lacuna no meu conhecimento da obra de Mailer, principalmente os títulos dos anos 50: não li, por exemplo, os famosos The Deer Park (O Parque dos Cervos) ou Advertsiments for myself (George Steiner já afirmou que ele merecia o Nobel por este último).
Em compensação, considero sua obra-prima Um Sonho Americano (1965) um dos romances-chave das últimas décadas, com sua mistura de paranóia, excesso e a possível poesia da prosa, que só os melhores artesões conseguem. Ele acaba de ser relançado no Brasil, em nova tradução.
Mailer gostava de literatura e de jornalismo. Neste último filão, temos diversos livros, como Miami e O cerco de Chicago ou o recente O Super-homem vai ao supermercado.
Mas ele era bom mesmo em fazer os dois juntos, o que resultou no impressionante Os Exércitos da Noite (1969), relato de uma marcha de protesto cujo clímax é a tentativa de uma multidão, embalada pela contracultura, no que ela tinha de mais generosamente, de mais intrinsecamente utópico, de fazer o edifício do Pentágono “levitar”.
Apesar de ter construído uma obra por muitas décadas, e multifacetada ainda por cima, creio que esses dois títulos, Um Sonho Americano e Os Exércitos da Noite, se beneficiem da conjunção de uma época, de um vigor, de uma mirada renovadora, basicamente irrepetível.
Nem por isso deixam de ser poderosos outros casamentos felizes com a vida “real”: nunca me interessei por boxe, só quando mediado pela magia das imagens do Scorsese de O Touro Indomável ou pelas palavras de Mailer em A Luta; e quem diria que, após A Sangue Frio, de Truman Capote, haveria o que se tirar da minuciosa narrativa de crimes verdadeiros, como provam as mil páginas (na verdade, não precisavam ser tantas) de A Canção do Carrasco (1979), sobre a vida e a execução de Gary Gilmore. “A gente era criado sabendo o que estava certo e livre para fazer o que estava errado”. Eis uma frase desse romance cuja ação se passa em Utah. De um lado, aquelas pessoas vivendo sob a égide da religião, achando que Deus fez o mundo para se viver assim, e que também não têm problemas com armas e com a exclusão social (aquele mito americano do “fracasso”), sabendo o que estava certo; e do outro lado, os perdedores, vidas fraturadas e errantes, gente dançada, meio algoz de si mesmo, meio vítima, livre para fazer o que estava errado, e que até viraram símbolo de uma boa parte da produção artística norte-americana
Ainda sob o signo do excesso, Mailer produziu o exuberante, quase delirante, Noites Antigas (1983), sobre a reencarnação de um mesmo personagem no Egito dos faraós, um dos romances mais originais do fim de século; e uma história da CIA, um pouco cansativa, O Fantasma da Prostituta (1991). Com mais equilíbrio, tivemos o romance “policial”, se se pode caracterizá-lo assim, Os machões não dançam (1984), que segue um pouco a linha de Um sonho americano e foi adaptado pelo cinema pelo próprio autor, num filme estranho, não completamente bem resolvido, mas no mínimo interessante (sim, eu sei que esse termo pode significar qualquer coisa, mas não me ocorre outro); e também O Evangelho segundo o filho (1997). Temia-se que o imprevisível Mailer criasse uma história de Jesus irreverente, até mesmo caricata, com seu ímpeto celiniano. Nada disso aconteceu. Fundindo os diversos evangelhos, ele nos deu o romance mais sóbrio e elegante já escrito sobre o tema. Quase se poderia utilizar a palavra “puro” para descrever o texto, que flui com uma naturalidade assombrosa. Nem parecia o autor que gostava de romances “impuros” e cheios de virtuosismos extravagantes, dos quais Noites Antigas é, com certeza, o ápice.
Mailer também gostava de biografias, daí ter escrito uma, memorável, sobre Marilyn Monroe, e uma outra, enorme, fruto de suas obsessões (e nós necessariamente não somos obrigados a participar delas), sobre Lee Harvey Oswald.
Ainda não se traduziu no Brasil sua “biografia” de Hitler, cujo ponto-de-vista parece que é o do Inferno, e que vem sendo ridicularizada. De fato, o projeto é difícil de engolir. No entanto, com um escritor que conseguiu transformar num momento sublime a tentativa de fazer o Pentágono levitar, tudo é possível.
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