(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 16 de julho de 1996)
O POETA
Leyla Perrone-Moisés tem um livro chamado Flores da escrivaninha. No caso de Carlos Drummond de Andrade, a maior parte do que ele publicou no final da vida (faleceu em 1987), ou foi publicado postumamente, poderia ser reunida sob o título Ervas daninhas da escrivaninha, pois quase chega a comprometer irremediavelmente a estatura artística do autor mineiro.
Para comprovar o efeito maléfico desses produtos do mofo criativo, aí está mais um livro, FAREWELL. A Editora Record e os herdeiros de Drummond esperam que o leitor fique emocionado com o clima de “adeus definitivo”. Mas como, se colocaram capa e contracapa ridículas, com nuvens e estrelas a sugerir o Infinito, numa mistura indigesta de Fernão Capelo Gaivota com 2001?
Dos nossos grandes poetas do século (Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Jorge de Lima), Drummond foi o que conseguiu maior repercussão popular. Só que ele se tornou, com isso, o “Poeta”, vítima de uma mitificação banal—mitificação mistificante fácil de observar no medíocre O carteiro e o poeta—,como se “Poeta” (ou, no terreno musical, “Maestro”) fosse uma insígnia que se usasse, uma condecoração, ou como se tivéssemos um bobo da Corte ou uma atração circense. Não importa que ele tenha sido, nos seus grandes poemas, um mestre da ironia e da angústia, ou que tenha criado imagens perturbadoras ou desconcertantes. Era o “Poeta”, a causar a mesma comoção pueril de um ursinho de pelúcia da Lionella.
O LIVRO
Não adianta. Assim como Corpo & Amar se aprende amando, FAREWELL é fruto do embotamento poético de Drummond. Não é ruim, é morno, um rescaldo. O envelhecer, o morrer aos poucos, dão o tom, mas um tom complacente porque requenta imagens que um Drummond mais pujante e cruel já havia lavrado sobre esses temas. Mesmo nos momentos melhorzinhos de FAREWELL, Drummond parece imitar Drummond e temos um desfile de lugares-comuns: “Claro que o corpo não é feito só para sofrer/mas para sofrer e gozar./Na inocência do sofrimento/como na inocência do gozo/ o corpo se realiza, vulnerável/ e solene…// Em ti me sinto dividido, campo de batalha/ sem vitória para nenhum lado/ e sofro e sou feliz/ na medida do que acaso me ofereças…”
Não falta nem a famosa “simplicidade” drummondiana: “Eis que acode meu coração/ e ofereço, como uma flor/ a doçura desta lição/ dar a meu filho meu amor.// Pois o amor resgata a pobreza/ vence o tédio, ilumina o dia…” e assim por diante.
Nem se vai falar aqui da cascata de clichês babujentos que borbota nas homenagens a artistas (como Fernando Pessoa), já que sempre foi a parte mais fraca e discutível da obra do “Poeta”. Mas e um poema como Desligamento? “Ó minh´alma, irmã deserta, consola-te de me teres habitado…” etc etc. Parece evocar intertextualmente os versos do Imperador Adriano, citados por Marguerite Yourcenar em seu romance: “Pequena alma terna flutuante/ Hóspede e companheira do meu corpo/Vais descer aos lugares pálidos duros nus/ Onde deverás renunciar aos jogos de outrora” (utilizo a tradução de Martha Calderaro). Há quase dois mil anos, o romano colocava os termos essenciais da vida e da morte. Parece não ter havido nenhum avanço na expressão do problema. E, no caso específico de Drummond, parece ter havido um visível recuo para uma expressão poética mais convencional e chocha.
Quando o leitor se lembra de Sentimento do Mundo, A Rosa do Povo, Claro Enigma ou Lição de Coisas, FAREWELL não parece (nem pode ser) a última palavra a ser dita por Drummond. O lançamento deste livro deve dar muito lucro aos herdeiros e à editora, mas lucramos mais visitando ou revisitando aqueles livros, onde as inquietações de Adriano aparecem com roupagem moderna e eterna: “Tudo é teu, que enuncias. Toda forma/ nasce uma segunda vez e torna/ infinitamente a nascer. O pó das coisas/ ainda é um nascer em que bailam mésons./ E a palavra, um ser/ esquecido de quem o criou; flutua/ reparte-se em signos. Pedro, Minas Gerais, beneditino/ para incluir-se no semblante do mundo…”
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