16 de junho. Uma data que aproxima Homero, lá na remota Grécia Antiga, o irlandês James Joyce e o paraibano, de alma pernambucana, Ariano Suassuna. Em 1904, nessa data, os personagens de Ulisses (publicado em 1922) se encontravam e desencontravam para reviver num único dia, e dentro da jaula do cotidiano moderno, no aparentemente nada épico espaço urbano, a relação de Ulisses-Penélope-Telêmaco da odisséia homérica; nessa data, há 133 anos, nascia em Taperoá Pedro Diniz Quaderna, narrador e anti-herói de A pedra do reino, cujo objetivo, errando numa existência degradada de rebento empobrecido, e cheio de expedientes, de antiga e ilustre família, é superar Homero criando a “suprema epopéia da Humanidade”, ao mesmo tempo grega, latina, ibérica e sertaneja. Para dar vida a essa rei/epopeida (como ele mesmo denomina), já que lhe falta a inclinação para o heroísmo, e a ação heróica de qualquer forma parece que ou já foi ou ainda será, nascia há exatos 80 anos Ariano Suassuna.
Labirinto urbano, mundão sertanejo. E Ulisses ainda tenta chegar em casa porque a épica não morre, apenas encontra novas e revolucionárias formas.
(texto-anúncio de uma palestra no Bloomsday de 2007, na Livraria Realejo, em Santos)
A REDENÇÃO DO SERTÃO SOB O SIGNO DO EXCESSO E DO PICARESCO
Em Geografia do romance, comentando o pensamento de Mikhail Bakhtin, Carlos Fuentes escreve: “Numa era de linguagens conflituosas (informação instantânea, sim, integração econômica global, idem, muita estatística e pouco conhecimento), o romance é, será e deverá ser uma dessas linguagens. Mas sobretudo deverá ser a arena onde todas elas podem marcar encontro. O romance não só como encontro de personagens, mas como encontro de linguagens, de tempos históricos distantes e de civilizações que, de outra maneira, não teriam oportunidade de relacionar-se” .
Tais palavras aplicam-se bem a uma obra publicada em 1971 (embora venha ocupando boa parte da vida do autor, ao que tudo indica, pois ele pretende reformulá-la), bastante comentada e pouco lida efetivamente: Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano Suassuna.
Escrita sob o signo do excesso, apresenta um narrador, Pedro Dinis Quaderna, o qual, aberta a sua tramela, não se consegue que a feche mais. É um tagarela que se repete, que promete sempre fatos e mais fatos e vai nos engambelando direitinho (às vezes, cansando um pouco a paciência), um Tristram Shandy de Taperoá, no sertão do Cariri, na Paraíba (ele começa a contar sua história, na prisão, em 1935). Rebento de uma estirpe de “fidalgos sertanejos” que tentaram impor uma monarquia paralela (ou em sublevação à nossa recém estabelecida, e autoritaríssima, República), num misto de exaltação política, sexual e mística, Quaderna é um intelectual, o qual, entre querelas com seus dois mestres (Samuel, reacionário e simpático ao Integralismo; Clemente, esquerdista e ligado às causas do povo; ambos, ao fim e ao cabo, comicamente parecidos, pois “a idéia fixa se embebeda do oposto”, já alertava Octavio Paz), almeja restaurar o Reino da família, através da criação de uma epopeia sertanejo-sebastianista, em forma de romance, transfigurando a pobre realidade do Nordeste.
Ao seu modo picaresco, Ariano Suassuna forja uma linguagem especialíssima (através da qual se abebera de inúmeras fontes literárias e populares, de José de Alencar a cantadores de feira) que é evidentemente uma máscara: Quaderna, no exercício do seu estilo “régio” (delicioso e virtuosístico), acaba revelando o desencanto com seu mundo e sua posição social, como agregado de um rico clã, cujo ramo a que pertence empobreceu devido ao furor sexual do pai, a herança dilapidando-se pelos muitos filhos afora.
Dois aspectos são particularmente notáveis em A Pedra do Reino: um, é o desejo de fazer um “romance”, que une narrador e autor. Curiosamente, num livro tão colorido e exuberante, vemos pouca ação; na verdade, é mais o anúncio eterno de uma ação que virá a ser narrada, tanto quanto o desejo de um Escolhido (o rei Sebastião ou o príncipe Sinésio) reaparecer e convulsionar o Sertão. O autor deste artigo até agora não chegou à conclusão se isso é força ou fraqueza, no sentido literário (inclino-me para a primeira hipótese); o outro aspecto é a vontade de que tudo seja significativo e simbólico, das pedras às roupas, dos animais de montaria aos animais selvagens. Num mundo sem sentido e sem rumo, tal vontade não deixa de ser comovente.
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 09 de junho de 2007)
A NOSTALGIA DA GRANDEZA E E DO ÉPICO: um outro 16 de junho
A propósito de A Pedra do Reino comentei, na seção anterior, dois aspectos que nele se destacavam: um, era o desejo do romance, da ação heroica, que mais se anunciava do que se cumpria na narrativa de Pedro Dinis Quaderna (outro aniversariante deste 16 de junho: nasceu no mesmo dia do seu criador, mas há 110 anos).
O outro aspecto é a vontade de que tudo seja significativo e simbólico. É a nostalgia do épico puro, das odisseias homéricas, no qual “toda a ação é somente um traje bem talhado da alma” ( na bela formulação de Lukács), embora tudo seja filtrado pelo (des) encanto cervantino.
Não deixa de ser também uma forma de sublevação à autoritaríssima (e então recente), República Brasileira (Quaderna começa sua narrativa, preso, em 1938), engrandecendo até os embates, mais para cômicos e caricaturescos, dos dois “mestres” de Quaderna, Samuel e Clemente.
A linguagem de Suassuna, como seu anti-herói, que percorre todas as classes sociais, indo do legítimo e oficial, até o ilegítimo (seus irmãos, frutos do furor sexual de Quaderna-pai, cuja herança dilapidou-se entre os muitos bastardos) e o suspeito, é picaresca e paródica, abeberando-se e apropriando-se de inúmeras fontes literárias e populares, de José de Alencar a cantadores de feira, todos os criadores da “realidade do possível”. Nesse ponto, podemos aproximar o mundão sertanejo de Ariano Suassuna do labirinto urbano urdido por James Joyce, no “bloomsday” de Ulisses: o banal se transfigura, o mito é a “aura” de situações comezinhas.
E podemos adaptar ao sertão do Cariri as palavras de Anthony Burgess sobre o romance irlandês: “o épico antigo era expansivo, o teatro, contrativo. Homero abrange céu, terra e mar e uma grande fatia de tempo; Sófocles se atém a um pequeno espaço e restringe a ação a um único dia. Joyce se atém a Dublin no dia 16 de junho de 1904, mas também usa o delírio e a imaginação para conter grande parte da história humana e mesmo o fim do mundo. A épica e o teatro cifram-se na estrutura de um romance burguês moderno… Com painel tão amplo, nenhum detalhe humano fica de fora”.
Leopold Bloom e Pedro Dinis Quaderna têm outra seara em comum com o herói de Homero: a astúcia, a capacidade de enfrentar o declínio do heroísmo e o dia a dia com os mais diversos expedientes mentais. Daí, seu “carisma” e fascínio.
(Resenha publicada em A TRIBUNA de Santos, em homenagem aos oitenta anos de Ariano Suassuna, em 16 de junho de 2007)
gosto muitíssimo da pedra do reino. foi uma daquelas surpresas. naquela época falava-se tanto; parecia tanto um pseudo-resgaste de coisa nenhuma, um cpc sofisticado para uma esquerda bem-pensante que não me animava a lê-lo. por acaso um dia pego emprestado, leio e fico fascinada. mas foi só o que li do suassuna – melhor manter aquela lembrança de deslumbramento que poucas obras nos causam, achei eu.
Comentário por dbottmann — 17/06/2012 @ 18:21 |
Que maraivlha saber que você é fã da Pedra do Reino. Gozado, eu não sou nada fã do teatro de Ariano Suassuna nem da sua figura, para ser sincero: acho todo aquele discurso meio cansativo meio histriônico demais. Como você, prefiro a experiência de um texto muito peculiar, esse sim carismático e que foge do figurino do “brasil autêntico” for exportation.
Abração.
Comentário por alfredomonte — 18/06/2012 @ 10:57 |