16 de junho de 1904
Certamente a data mais famosa da literatura. O bloomsday. O dia da ação de Ulisses (1922), no qual acompanhamos as andanças dos protagonistas por Dublin: Stephen Dedalus, 22 anos, que retornara à Irlanda devido à morte da mãe (estava estudando em Paris) e se debate contra o marasmo da pátria e dos seus compatriotas (tema de Dublinenses, 1914, e Um retrato do artista quando jovem, 1916, dos quais vários personagens reaparecem em Ulisses), que ameaça engoli-lo também; Leopold “Poldy” Bloom, 38 anos, corretor de anúncios judeu, o qual, após sair de casa nesse dia, perambula para retardar o momento em que deve voltar, pois sua esposa, Molly, receberá um amante, Blazes Boylan, provável sócio numa turnê musical.
Os dois representam o Joyce da época da narrativa e o Joyce da execução e publicação da obra, 18 anos depois. Etapas e prismas diferentes “da mesma personalidade, numa contransmagnificandjudeibumbstancialidade” (na versão de Antônio Houaiss) : a consubstancialidade do Pai e do Filho no catolicismo, de Shakespeare e seu filho morto, Hamnet, transformado em Hamlet, que tem um pai morto. Stephen tem um pai vivo a quem não respeito e do qual permanece alheado. Bloom perdeu um filho onze dias depois do nascimento, cessando suas relações sexuais com a fogosa esposa.
Ao transfigurar a Odisséia dentro do cotidiano pequeno-burguês (cada cena do romance reproduz fielmente episódios homéricos, através de variados e desafiadores recursos estilísticos; por exemplo: após o almoço, a sonolência causada pela digestão evoca os efeitos de esquecimento narcótico dos lótus ingeridos pelos imprudentes companheiros de Ulisses), Joyce configura (consubstancia) uma estranha família para emancipar Stephen da paralisia dublinense; Poldy e Molly o assumem como filho.
Após encontros fortuitos e mal se conhecendo, acabam por reunir-se numa maternidade: Stephen fora procurar companheiros de farra entre estudantes de medicina, Poldy aparecera à procura de notícias de uma conhecida que estava sofrendo para dar à luz. Preocupado com a exploração do jovem (cujo salário, como professor, fora pago no final da manhã) pelos camaradas, e aqui o autor aproxima as agruras de ambos à usurpação e dissipação de bens sofridas por Telêmaco e Ulisses em Ítaca. Poldy o acompanha até um puteiro, permanecendo com ele até o final da noitada e levando-o para casa, fazendo-lhe a oferta de ali se instalar como hóspede.
Stephen recusa, mas a proposta paira como uma possibilidade implícita, cujo raio de alcance é capaz até de renovar a relação entre o casal Bloom: mesmo depois de horas com um amante vigoroso, Molly, que fora servida pelo marido no começo do dia, acaba sendo intimada a fazer o mesmo por ele no dia seguinte. Pois embora tenha havido certas demonstrações de menosprezo por Poldy (o anti-semitismo é exposto cruamente ao longo de Ulisses), entre outros motivos devido a um mal entendido com uma dica de aposta em corridas de cavalos (evocando a astúcia meio desonesta de Ulisses e o Cavalo de Tróia), embora tenha sido um dia de consumação adúltera consentida, e embora Molly inicie o célebre monólogo que fecha a narrativa depreciando as peculiaridades do marido, o fato é que Leopold Bloom deita-se na cama, ao final, no cômputo dos vestígios do dia, como um vencedor, aquele que prevaleceu, mesmo que seu heroísmo tenha sido vencer cada hora desse dia, tendo sido visto em todos os aspectos de um ser humano, até o ponto da defecação e da masturbação ou, num pólo oposto, da alucinação.
Boa parte de Ulisses não oferece problemas ao leitor mais experimentado, ainda que exija muito dele. Os monólogos interiores das personagens (Stephen na praia, Molly na cama), a cena do enterro (na qual se mostra os mortos muito presentes para os vivos, idéia que domina o conto mais famoso de Dublinenses e que fará praça no posterior e muito joyceano Ironweed, de William Kennedy), as vastas cenas do jornal e da biblioteca (esta última centrada em Shakespeare e Hamlet).
E a lírico-perversa cena em que Bloom se masturba contemplando Getty MacDowell na praia, descobrindo, desiludido (como o Brás Cubas de Machado de Assis com relação a Eugênia, a flor da moita) que ela é coxa (há um reaparecimento dela na zona do meretrício, mais tarde), e a pungente cena em que Bloom ouve o pai de Stephen cantando com sua bela voz, na taberna, e na qual vemos um mundo de possibilidades desperdiçadas numa geração (o que também é muito forte no monólogo de Molly), transcendendo aquele bando de beberrões truculentos do qual o senhor Dedalus faz parte, e a cena pós-noitada, em que aparece um falso Ulisses (o marinheiro mentiroso) em sua volta para casa, e depois sua rebarba, já na casa dos Bloom.
Entretanto, três seqüências quase fazem naufragar a persistência do leitor, de tão difíceis: a cena em que um Cidadão meio alegórico (hostil a Bloom) e equiparado ao ciclope Polifemo através da “garganta”, ou seja, da retórica agigantada; a maior parte da cena da maternidade, na qual se faz o parto da língua inglesa moderna, a partir da paródia de vários estilos, desde o mau latim dos cronistas do início da cristandade, e que na verdade era virtualmente intraduzível; a cena da alucinação de Bloom no puteiro. O que irrita nelas, basicamente, é a necessidade de recorrer a estudiosos para entendê-las minimamente. A tradução de Houaiss também não ajuda em nada.
Em leituras anteriores, eu me identificava com Stephen Dedalus. Certamente por efeito do tempo, agora me sinto mais na pele de Poldy, o marinheiro das ruas de Dublin, esse maravilhoso personagem com “um plano multiacarinhado que ele tencionava um dia realizar numa quarta-feira ou sábado, de viajar para Londres,via alto-mar, para não dizer que jamais houvera viajado extensivamente nenhuma grande extensão pois que ele era de coração um aventureiro nato ainda que por um logro dos fados tivesse consistentemente permanecido como marinheiro de água doce”.
(resenha publicada na véspera do centenário do Bloomsday, 15 de junho de 2004, em A TRIBUNA de Santos) notinha pueril: eu tinha 38 anos
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