Escritos entre dois projetos ciclópicos e avassaladores (Conversa na Catedral, 1969, e A Guerra do Fim do Mundo, 1981), Pantaleão e as visitadoras (1973) e Tia Julia e o escrevinhador (1977) correram o risco de ser vistos como “tempos fracos” da obra de Mario Vargas Llosa, meros exercícios farsescos. O tempo provou que não eram, e o leitor brasileiro pode confirmar o virtuosismo de ambos nas novas traduções lançadas pela Alfaguara.
Tia Julia e o escrevinhador, reaparecendo em sua terceira versão, feita por José Rubens Siqueira, transcorre em meados dos anos 50 e alterna o relato do romance surgido entre Varguitas, 18 anos, e a irmã de uma de suas tias, Julia, boliviana divorciada de 32 anos (fato inspirado na vida do próprio Llosa e seu primeiro casamento), com os enredos criados pelo compatriota de Julia, Pedro Camacho, o qual escreve várias novelas de rádio ao mesmo tempo e se torna uma celebridade em Lima. As duas tramas se complicam: a família de Varguitas descobre o que se passa entre ele e Julia e arma-se um complô no seio do numeroso clã para separá-los (o que os obriga a tentar o casamento em povoados provincianos, burlando o fato de Varguitas ser ainda “menor”); Pedro Camacho começa a misturar personagens de novelas diferentes, ressuscitar mortos, trocar profissões, até que, armada a mais completa barafunda, seja obrigado a matar a todos por meio de cataclismos divertidos (num dos melhores episódios, que a princípio é uma final de campeonato de futebol e depois se metamorfoseia em tourada, há lançamento de gás lacrimogêneo, multidões pisoteadas, policiais suicidando-se, amantes que só na agonia se enlaçam finalmente)…
Esse foi o aspecto mais destacado com relação ao livro: seu mergulho no coração do dramalhão, esse fascínio pelos enredos mirabolantes e exaltados, um vôo pelo exagero do folhetim, que o torna irmão do García Márquez de O amor nos tempos do cólera, do melhor Manuel Puig (o de Boquinhas Pintadas, A traição de Rita Hayworth, O beijo da mulher aranha) e o cinema de Pedro Almodóvar.
Só é necessário fazer a ressalva de que os supostos enredos de Pedro Camacho são escritos com o tom e a atmosfera do dramalhão, mas na verdade rompem com as convenções dos argumentos, com o decoro sexual que se esperava na época. Llosa hipertrofia as características do gênero de forma a tornar evidentes as fantasias e fetiches dos espectadores, um pouco como o Nélson Rodrigues de A vida como ela é, ou o Dalton Trevisan das seus perversos folhetins curitibanos (Virgem louca, loucos beijos, por exemplo), fazendo um bem armado contraponto à crônica de costumes da burguesia limenha representada pela família de Varguitas e o escândalo criado por Julia.
Além disso, Tia Julia e o escrevinhador é, como A escolha de Sofia, de William Styron, uma belíssima reflexão sobre o desenvolvimento da vocação literária, que está na base do enleamento de Varguitas, candidato a escritor (e ambiciosíssimo), com a situação de Pedro Camacho, demiurgo do rádio, criador de mundos, artista medíocre e no entanto atado à mesma rotina estafante de criar, criar, criar, como um Balzac ou um Flaubert: “todas as suas horas estavam tomadas com a produção de novos roteiros: __ Se eu paro, o mundo vem abaixo —murmurou.”
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em cinco de janeiro de 2008)
VER NO BLOG:
https://armonte.wordpress.com/2013/10/25/os-perus-de-lituma-vargas-llosa-apetite-pela-totalidade-iv/
Alfredo, tomei a liberdade de publicar essa matéria na página do grupo de leitura “Mania de ler” pq além do texto excelente ele veio a calhar diante da publicação da FSP de Tia Júlia e o escrivinhador, nesse domingo. grande abraço.
Comentário por anna rocha — 22/04/2012 @ 20:59 |
Eu só posso agradecer a gentileza. Infelizmente, estou de luto: meu time foi eliminado do Paulistão.
Bjs.
Comentário por alfredomonte — 23/04/2012 @ 11:56 |