Em Get a Life-De Volta à Vida (em tradução de Ivo Korytowski para a Companhia das Letras), Nadine Gordimer relata uma série de eventos dramáticos envolvendo a família de seu protagonista, Paul Bannerman: ele passa por uma “quarentena” obrigatória, após a operação de extração de um tumor maligno na tireóide e a aplicação de iodo radiativo; seu pai, numa viagem ao México, conhece outra mulher, apaixona-se e nunca mais volta para sua mãe, a qual, por sua vez, adota uma menina negra (é a África do Sul pós-apartheid) de três anos, que fora estuprada, contaminada com o vírus HIV e abandonada; sua própria esposa engravida novamente, contra a sua vontade.
Além disso, há a luta do grupo de ambientalistas do qual Paul faz parte contra projetos governamentais ecologicamente ruinosos: a destruição de dunas e de um delta cuja extensão o faz ser identificável até do espaço. A humanidade, a “civilização” como tumor maligno na natureza, desafiando sua capacidade de recuperação, uma “quarentena” muito além da capacidade imaginativa do indivíduo.
Não faltam, portanto, elementos para compor mais um vigoroso painel contemporâneo, com a musculatura narrativa que a grande escritora sul-africana alega ter desenvolvido tarde em sua carreira (mais especificamente, a partir de O Falecido Mundo Burguês, de 1966), em reação à sua “sensibilidade aguçada”, mais propensa a envolver a vida num envelope transparente na esteira de uma Virginia Woolf. Numa das famosas entrevistas da “Paris Review” ela declara: “minha luta tem sido para não perder a agudeza de captar nuances de comportamento e casá-las com sucesso a um talento narrativo. Porque a espécie de assuntos que estão ao meu redor, que me atraem, que vejo e me motivam, exige uma forte habilidade narrativa”.
Os resultados dessa luta não podiam ser melhores: o mosaico de uma sociedade repressiva e dividida, e sua posterior e conflituosa superação (“mas, é claro, num certo sentido você é ‘sortudo’ se tem grandes temas”), em romances já clássicos como The Conservationist- O Amante da Natureza (ganhador do Booker Prize em 74, publicado no Brasil apenas em 82), A Filha de Burger, O Pessoal de July. Neles, e em trabalhos mais recentes, como Ninguém para me acompanhar ou A Arma da Casa, a determinação é quase balzaquiana, mesmo com a apurada sofisticação técnica: é uma realidade social específica que está sendo delineada diante de nossos olhos (evidentemente, daí advém a sua eficácia universal, a velha história de que falando da nossa aldeia…).
Pois bem, com todos os conflitos que permeiam o livro, com toda essa tarimba, Nadine Gordimer manda tudo às favas em De Volta à Vida, desossando a tal musculatura narrativa desenvolvida por ela, desencarnando-a mesma, e nada ficando a dever a mestres da insubstancialidade contemporânea: Don DeLillo, Bernardo Carvalho, Paul Auster, João Gilberto Nöll. Acompanhando o estado fantasmático que cerca Paul Bannerman desde sua “quarentena”, ela nos apresenta a realidade sul-africana num puro “envelope transparente”, digno de Virginia Woolf, num estilo quase a ponto de se desfazer, de se volatilizar, que eu só tinha visto até hoje, com essa intensidade, nos romances de Joan Didion, Democracia e A Última coisa que ele queria, uma espécie de má vontade com o material que tem de lidar (e que visto do espaço, em escala cósmica…) e frases-refrão que reaparecem e reaparecem, dando ritmo a esse estranho sussurro narrativo, que persiste na reticência intransigente do que poderia ter sido um grande romance tradicional.
Mas que romance tradicional poderia surgir quando se lida com o inconcebível, quando as pessoas têm de se acomodar ao intolerável (esse “tema” que é tão caro ao compatriota de Gordimer, J.M. Coetzee, e que rendeu uma obra-prima como Disgrace-Desonra): “… O que aconteceu —essa formulação implica o passado, o que existe agora é um presente sem existência no domínio das experiências fornecidas…”?
Se Doris Lessing, aos 82 anos, impressionou com o fôlego épico de O Sonho Mais Doce (2001), também de certa forma mostrou-se estática (mesmo com toda a sua autoridade) na exploração do mesmo universo das obras anteriores (é que o universo lessinguiano é rico e vasto), Gordimer (que também chegava aos 82 no ano da publicação original de De Volta à Vida, 2005) surpreende e faz um dos romances mais atrelados, ou entrelaçados, ao que conhecemos pelo nome vago de pós-modernidade. E assim como o corpo de Paul Bannerman irradia invisivelmente seu perigo, e assim como falamos em escombros (da tradição narrativa, da África do Sul do apartheid, do meio ambiente), falemos também de um talento, ainda que inaparente, que irradia perigo (“açula a atenção, isca-a com o risco”, como no poema de João Cabral de Melo Neto): o leitor pode ficar tão fascinado por ele que não aceite mais outro tipo de texto representativo de nosso zeitgeist, do espírito da nossa época. Assim, com uma simplicidade alucinante (que parece ser típica dela), essa senhora octogenária se torna a escritora mais moderna, up to date, do mundo.
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 27 de outubro de 2007)
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