MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

23/04/2012

Uma toca de coelho para o país das maravilhas freudianas (ELIZABETH segunda)


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Em 1908, enquanto O caráter e o erotismo anal atraía indignação e ridículo ao ser publicado, a chamada “Sociedade Psicológica das Quarta-feiras”, círculo que se reunia em Viena em torno do autor do ousado ensaio, Sigmund Freud (1856-1939), tornou-se a “Sociedade Psicanalítica de Viena”; e em abril do mesmo ano ocorrerá o Primeiro Congresso Internacional de Psicanálise, já com 42 participantes, diante dos quais um nada ridicularizado e nada coberto de ridículo “Pai” do movimento psicanalítico apresentará suas Observações sobre um caso de Neurose Obsessiva, relatando o famoso caso do Homem dos Ratos.

Muita gente pensa ser difícil ler Freud sem o devido instrumental. Não é. Como Harold Bloom já demonstrou, trata-se de um grande escritor, além do maior gênio do último século. Mesmo assim, há uma “oscura selva” formada pelos vários períodos em que os conceitos freudianos foram sendo apresentados e revistos, e mesmo a leitura de obras como A interpretação dos sonhos; Psicopatologia da vida quotidiana; O chiste e sua relação com o inconsciente; Totem e Tabu; Luto e Melancolia ou O ego e o id, que considero essenciais, representa um investimento intelectual parcial e fragmentário. O que me ajudou muito foram alguns livros que serviram para compensar em parte minhas lacunas, como Freud, uma vida para o nosso tempo, de Peter Gay; As idéias de Freud, de Richard Wolheim; Freud, além da alma, de Jean-Paul Sartre (que forneceu a matéria prima para o extraordinário filme de John Huston, com Montgomery Clift); A negação da morte, de Ernest Becker; Freud: a trama dos conceitos & Freud, pensador da cultura, de Renato Mezan. Só que são todos aventuras de leitura, isto é, livros totalizantes e tantalizantes que demandam muita concentração e agregam muitas outras leituras consigo.

Para o leitor comum, desejoso de uma introdução mais simples e prática, porém não completamente esquemática, há uma opção simpática que saiu recentemente: Dossiê Freud, de Elizabeth Mednicoff [1] , onde podemos encontrar os acertos e erros dos trabalhos de divulgação.

O livro é dividido em quatro partes. A primeira é mais biográfica, contextualizando Freud em sua época e cidade, e sintetizando os percalços da sua carreira e da constituição do movimento psicanalítico. Há coisas banais e rasas como uma seção de triviais “frases famosas” (pobre Freud, cuja escrita era tão elegante e complexa!) e uma incômoda falta de polimento, como se o texto fosse escrito aos trambolhões e não houvesse um esforço maior de revisão, de forma a evitar repetições da mesma informação (pior ainda, com a mesma formulação) e escorregadas para o tom de revista Marie Claire, do tipo: “Mostrava-se muitas vezes um homem inseguro, inibido, possessivo e ciumento. Apesar de suas idéias revolucionárias na época, era conservador com relação às mulheres, fazendo comentários que enalteciam os serviços das mulheres dentro de casa e não fora dela”. Após ter escrito tal trecho, sem a menor transição lemos em seguida: “Freud, acima de tudo, foi corajoso, determinado e desbravador.” Ora, ora, ora, ela acabara de fazer uma observação que abre uma fissura contraditória na personalidade (fascinante, aliás) de Freud e depois faz tal panegírico tosco, e desconexo completamente com as afirmações imediatamente anteriores!

A segunda já é mais redentora (embora com a mesma falta de cuidado com a escrita que horrorizaria o autor de O futuro de uma ilusão), com uma exposição clara dos principais conceitos elaborados por Freud, desde a sua concepção neurológica, arrojada para a sua época, do cérebro, com neurônios e descargas de energia, que se associou ao estudo inicial do fenômeno da histeria e dos estados psicopatológicos, até o aprofundamento de uma divisão da vida simbólica do indivíduo, desde a mais remota infância, um processo caracterizado pela repressão e pelas chamadas fases (oral, anal, fálica e genital), que constroem o universalmente conhecido “Complexo de Édipo”, e polarizado pela pressão exercida sobre o ego pelo id e pelo superego:

“O id é o sistema original, a matriz, de onde o ego e o superego vão se desenvolver posteriormente. É formado pelos aspectos psicológicos herdados e presentes no nascimento, incluindo os instintos… está voltado a satisfazer nossas necessidades básicas. Sua atividade consiste em impulsos que buscam o prazer, procurando adquirir a gratificação e não suportando a frustração. É aquele nosso lado instintivo que não mede as conseqüências dos atos para se satisfazer. Os conteúdos do id são quase todos inconscientes e incluem aspectos que nunca se tornaram conscientes e outros que foram considerados inaceitáveis pelo consciente (…) Entretanto, à medida que a criança vai crescendo, aprende que precisa se adaptar às exigências e condições impostas pelo meio em que vive, pois nem tudo que deseja consegue. O id não deixa de existir, ele nos acompanha e permanece em nossa vida adulta. Mas para que ocorra essa adaptação [ao princípio da Realidade, subjugando o princípio do Prazer], uma nova parte do aparelho psíquico se desenvolve a partir do id: o ego, cuja principal função é agir como intermediário entre o id e o mundo externo. É o ego que aprende a controlar e regular os impulsos do id… A criança continua a se desenvolvendo e descobre que existem normas, regras, padrões, de moralidade tanto dos pais quanto da sociedade. Então começa a ouvir as proibições, o que é feio, o que é vergonhoso, e assim acaba incorporando essas crenças à estrutura psíquica, formando, a partir do ego, o superego, o qual, então, passa a exercer um papel, vamos dizer assim [sic] de censura imediata… O superego, portanto, é o oposto do id. Enquanto o id vive satisfazendo as necessidades imediatas, o superego funciona reprimindo. Nenhum deles é realista e imaginem a confusão, já que duas partes da nossa personalidade são completamente opostas e, assim, geradora de conflitos. Com o passar do tempo, tais conflitos emocionais, problemas mal resolvidos e as disputas entre o id e o superego na infância vão gerando as neuroses que temos quando adultos.”

 

A terceira parte descreve os métodos desenvolvidos por Freud a partir do abandono da hipnose (para curar os sintomas histéricos, na pré-história da Psicanálise), já que suas teorias também envolvem a prática clínica.

O achado mais feliz é colocar na quarta parte alguns casos clínicos famosos, que ajudaram Freud na constituição e revisão dos seus maiores insights (Anna O., a qual foi paciente de Josef Breuer, um dos mentores de Freud, e que teve a duvidosa honra de ter sido escolhido por Irvin D. Yalon como protagonista de Quando Nietzsche chorou; O homem dos ratos; o pequeno Hans; Elizabeth Von R.; Dora; o homem dos lobos). Depois, há uma bobagem típica da nossa era de iluminações-miojo e auto-ajuda fast food: conselhos para uma auto-análise psicanalítica. Tudo bem que foi assim que Freud revolucionou a si mesmo, escrevendo o seu belíssimo Interpretação dos sonhos, porém da maneira como a receitinha é proposta só vai fazer Nietzsche chorar mais ainda.

 

(resenha publicada originalmente em 17 de maio de 2008,  em “A Tribuna” de Santos)


[1] Psicóloga clínica, com especialidade em Psicodinâmica, seja lá o que for isso. Ela tem um site para visitação: www.novoequilibrio.com.br, caso alguém se interesse mais pelo seu trabalho.

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