(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 19 de abril de 2011)
A China e os países islâmicos do norte da África não saem do noticiário. Um dos mais talentosos romances publicados neste novo século entrelaça essa complicada geopolítica em que a palavra “mercado” é a tônica dominante: O Livro dos Mandarins, de Ricardo Lísias, autor que eu conhecia apenas de uma leitura anterior, Duas praças, que não me preparara para essa explosão de exuberância.
Paulo, o protagonista, é executivo de um banco multinacional. Admirador fervoroso das idéias e da trajetória do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ele impressiona os superiores com seu visionarismo corporativo “até atingir o cargo de diretor do Setor de Desenvolvimento… . Sua função era basicamente recolher dados e redigir relatórios para que os outros setores do banco pudessem tomar decisões com maior embasamento… foi designado para ocupar o posto principal do Projeto China, uma espécie de força-tarefa que o banco criou para estudar, em Pequim, como poderia lucrar com o desenvolvimento daquele país tão interessante… porém, ele começou a sentir que era o momento de mergulhar em alguma coisa mais pessoal, mesmo que isso significasse um recomeço. Foi então que surgiu a Confucius, uma empresa de consultoria cujo principal objetivo é dar acompanhamento a executivos e oferecer palestras e minicursos de atualização…” (além disso, ao longo desse percurso, Paulo prepara um “Livro dos Mandarins”, manual para qualquer um que deseje obter sucesso e realização).
Esse resumo pseudo-sério faz parte da pândega machadiana que permeia o estilo de Lísias em O livro dos mandarins. Como todos aqueles que criam um romance único, ele plasmou uma linguagem original e inimitável para satirizar e demolir a mentalidade capitalista cuja impregnação atávica de ganância e arrivismo é maquiada com chavões do senso comum, manipulados pelos gurus da auto-ajuda e da neurolingüística (Paulo se orgulha até de ter criado a “lingüística corporativa” ao estudar os ideogramas chineses). E ás vezes até quem os utiliza de forma oportunista acredita mesmo nesses chavões, que acabam substituindo a realidade.
Na primeira parte, absolutamente fabulosa, enquanto Paulo vai se qualificando para a vaga que todos cobiçam,elaborando suas idéias-chaves, a narrativa adota um tom prognóstico, antecipando incidentes futuros de sua brilhante carreira na China. Depois, entretanto, tudo se revela uma ficção: ele não foi designado para a China coisa nenhuma, e sim infiltrado no Sudão, de um modo “informal”, para dizer o mínimo, pois ali as condições para negócios são, digamos, mais turvas.
Paulo nunca deixará de dizer que esteve na China, e toda a sua empresa de “mentoring, coaching e counseling” é baseada nessa experiência forjada. Mais ainda, na divertidíssima segunda parte, Sudão e China intercambiam-se o tempo todo na narrativa, e prostitutas sudanesas cujo maior apelo (os homens ficam fissurados) é a mutilação genital praticada ancestralmente, depois de serem chamadas, todas, de Salma (os mesmos nomes são permutados entre inúmeros personagens[1]) recebem as alcunhas de Liu Xan Liu Xin e Liu Xun. No Brasil, elas (após uma fuga rocambolesca do Sudão, que considero as páginas mais fracas do romance, felizmente são poucas) se tornam “gueixas massagistas” que oferecem relaxamento a empresários na recém-criada Confucius (um dos momentos mais deliciosos de O Livro dos Mandarins ocorre quando a noiva de Paulo se depara com o grupo, supostamente oriundo da China, no aeroporto). E farão mais sucesso do que os serviços de “mentoring, coaching e counseling” do visionário Paulo, o que encaminhará a terceira parte para um tom mais de chanchada, sem que o romance perca seu virtuosismo e graça.
O maravilhoso romance de Ricardo Lísias, cujas soluções criativas eu mal arranhei nesta resenha, descortina para o leitor tanto um mundo de mensagens subliminares, um mundo emblematizado por aquela cena de lavagem cerebral de Sob o domínio do Mal, de John Frankenheimer, na qual, sob a aparência de plácidas senhoras tomando chá e discutindo flores, ocultam-se militares chineses manipulando mentes, como também um mundo dominado pela propaganda, mesmo que a mais mentirosa e absurda, como a de O segredo do bonzo, de Machado de Assis. O mundo em que vivemos.
[1] Eu adoro a maneira como Paulo vai ganhando epítetos que substituem seu nome ao longo da narrativa, ora de forma elogiosa, ora de forma depreciativa:
o homem-paulo; Maozinho; Pau**; Pa***; P****; *****; o branquelo; o grande amigo brasileiro; este aqui (ou neste aqui); Belé; Belé porra nenhuma; Versati (ou Versatinho); o bobo; Paulinho; exceção; o menino; um homem-feito; ming ming; o marido dela; o brasileirinho; o amigo aqui; o samurai chinês; seu malandrinho; o homem mais inteligente do mundo; o desgraçado; grande bvndão; essa mula (dessa mula); aquele cara que foi para a China; o doutor; muito detalhista e metódico; o autor; o escritor de verdade; o torto; o homem realizado; qualquer escritor, além de um ideograma chinês que não conseguirei reproduzir aqui.
Fiquei tentado a fazer várias comparações com autores como Don DeLillo (Cosmópolis), na capacidade de extrair material épico mesmo de situações pós-modernas, ou ainda com Joan Didion (Democracia & A última coisa que ele queria) ou, em certo sentido, com certos John Updikes.
Mas creio que a similaridade mais tangível é com Machado de Assis mesmo. O livro dos mandarins é o Quincas Borba do nosso tempo.
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