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“Paulo observava o irmão, diante do espelho…
__ Vai sair, Antonio?
__ Vou… O Mauro, o Zé Paulo e eu vamos comer a empregada do Mauro… O Mauro já comeu. E avisou que se não der para nós, conta aos pais que ela é uma puta.
__Ela cobra quanto?
__ Que cobrar o quê, neguinho! Pegaram ela na roça para criar. Não tem onde cair morta. Quero comer aquele cu. Vou arrombar aquele cu.
__ Quantos anos ela tem?
__ Uns quatorze, quinze. É cabaço, ainda. Só deixa botar no cu…
__ E se ela não quiser?… Hein, Antonio? E se ela não quiser?
__Já te disse que ela é cria da casa.
__Mas pode não querer.
__ A gente come à força e quebra ela de porrada.”
Esta cena (na qual eu dei uma condensada), entre um dos protagonistas de Se eu fechar os olhos agora, Paulo (a essa altura com doze anos), e seu irmão mais velho, está quase na metade do livro, e demonstra de forma eloqüente e cabal a mentalidade que o romance (o seu primeiro) de Edney Silvestre pretende desmascarar, fundada no machismo sem limites, no patriarcalismo, na desfaçatez de quem manda, faz o que quer e “quebra de porrada”, mesmo que seja exemplificada pelo pueril e boçal filho de um açougueiro (como é o caso de Antonio) até chegar às camadas superiores da nossa sociedade, a elite que manda no país, com os mesmos “princípios” e a mesma cara-de-pau.
O enredo se inicia como uma espécie de Dália Negra do interior do Rio de Janeiro (cujo passado remonta à glória da cafeicultura): dois meninos, Paulo e seu amigo Eduardo encontram o cadáver extremamente mutilado de uma mulher, em 12 de abril de 1961, dia em que Iuri Gagárin deu a volta à terra no espaço. Estamos às vésperas de acontecimentos momentosos: o assassinato de Kennedy, no plano mundial; a revolução de 64, no plano nacional…
Logo se descobre que a morta,Anita, era a “vagabunda” da cidade (“uma mulher permanentemente aberta à visitação pública”): casada com um dentista muito mais velho que ela (que confessa o crime e depois se suicida na prisão, tudo mentira, é claro), transava com todos os poderosos do local. Paulo e Eduardo resolvem investigar o crime e contam com a ajuda de Ubiratan, um forasteiro que mora no asilo de velhos local, e que durante a ditadura de Getúlio Vargas fora torturado por ser comunista. É ele quem descobre (com a ajuda dos meninos, mais ágeis fisicamente) que Anita na verdade chamava-se Aparecida, e nascera na fazenda da família do prefeito, como fruto do estupro de uma criada negra praticado pelo pai dele, senador da república. Como sua tez branca era reveladora do absuso, fora enviada a um orfanato. Mas, como boa “cria da casa”, fora obrigado a se casar com o dentista, um pervertido que firmara um pacto de cumplicidade com ex-colegas de seminário, de forma a explorar sexualmente a mulher de todas as maneiras.
No final do labirinto, perversão sexual, exploração, resquícios da escravidão, e, coroando tudo, incesto (Dália Negra se converte um pouco em Chinatown, acho que os mais aficcionados por cinema lembrar-se-ão das revelações que Faye Dunaway faz a Jack Nicholson sobre sua família: a irmã que ela procurava era, de fato, a filha que tivera do próprio pai), são as motivações do crime, que será acobertado e marcará os futuros caminhos de Paulo e Eduardo (um dos melhores momentos do romance acontece quando os dois recebem uma advertência do diretor e Eduardo tem o seguinte insight: “e se não houvesse futuro para ele? O futuro que até esta manhã, na sala do diretor do colégio, lhe parecera garantido? E se no Brasil, refletia, neste Brasil novo em que surgiam indústrias, estradas, empregos, e se neste Brasil novo, mesmo sendo uma democracia como os professores ensinavam, onde nós o povo, temos eleições livres e decidimos quem vai nos governar, e se neste Brasil houvesse poderes, forças que ele não sabia dizer quais eram,ou o que eram, nem tampouco apontar onde estavam, e se as houvesse, essas forças, esses poderes capazes de decidir o destino dele, sem que ele pudesse intervir? Alterar tudo sem chance de retorno? Como no dia em que retiraram Aparecida do orfanato para casá-la com o dentista?”)…
Em tudo, vemos a mentalidade de Antonio, o irmão de Paulo: “Pegaram ela na roça para criar, não tem onde cair morta, vou arrombar aquele cu, a gente come ela à força e quebra de porrada”. E depois as pessoas acham que vivemos tempos infelizes e bárbaros. Assim como Leite Derramado, de Chico Buarque, para citar outro caso recente de romance que se debruça sobre nossa história, a desmoralização social brasileira não é de agora, nós estamos é purgando o passado. O caso da aluna da UNIBAN, achincalhada e acossada por uma massa de boçais (de ambos os sexos) mostra como os avanços são frágeis e como podemos retroceder rapidamente.
“__ Aparências enganam. Mais cedo ou mais tarde vocês irão aprender. Nada neste país é o que parece. E esta cidade é um microcosmo do Brasil.”
Além desse desmascaramento e acerto de contas , Se eu fechar os olhos agora também é um exercício proustiano, de memória afetiva. É por esse lado que se revela mais interessante, a meu ver, principalmente no seu início, onde o autor estreante utiliza com grande acerto e critério soluções narrativas que desestabilizam as certezas narrativas, o que nos traz à mente o estilo de uma Marguerite Duras ou de uma Joan Didion (ele também me lembrou um pouco, sem o virtuosismo dele, é claro, Mario Vargas Llosa, e seus acertos de conta com o passado peruano), como no caso do capítulo “Noche de Ronda”: “Alguém que ouvia um disco. Ou uma fita cassete. Havia fitas cassetes naquela época, em 1961. Havia? Naquela cidade? Quem as teria? Não um operário. Ninguém naquela rua poderia ter um toca-fitas. Um pai açougueiro tampouco. Naquela rua, seguramente, ninguém. Ou talvez sim…” e mais adiante: “Ouvi a canção mais tarde…Não. Não. Não. Tenho certeza: ouvi naquela noite. Uma voz de homem. Acho que era…Uma voz masculina. Acho. Tenho certeza. Acho…”
Esses primeiros capítulos e, ao longo do romance, o que se refere ao mundo dos dois protagonistas-mirins, Paulo e Eduardo, provam que Edney Silvestre poderá ser um romancista de primeira, ele tem o talento para tanto. Os dois meninos esbarrando nos limites da sua experiência e tentando decifrar os códigos do mundo adulto , por mais que já tenhamos visto tudo isso, ainda assim são o melhor de Se eu fechar os olhos agora, é o caso das suas reações quando Ubiratan os leva para assistir à Doce Vida, de Fellini, ou quando discutem aspectos da personalidade de Anita/Aparecida e, não conseguindo explicações plausíveis, que combinem com sua percepção de menino, Eduardo pensa: “Mais uma vez não conseguiu fechar o raciocínio. Mais uma vez estacava diante do paredão do mundo adulto, por trás do qual havia regras que não tinha como entender”.
Infelizmente, a partir do momento em que a trama se concentra nas investigações e descobertas de Ubiratan, o romance enfraquece muito: em primeiro lugar, porque a depravação das elites é reiterada de tal forma que a solução do crime não apresenta o menor impacto, e em segundo porque o personagem Ubiratan não é lá muito bem desenvolvido ou interessante, além disso o autor parece não confiar muito na inteligência, ou pelo menos no conhecimento histórico dos leitores (ele parece nos ver com a idade mental dos dois meninos: 12 anos), e seu herói acaba fazendo paralelos e caindo em didatismos que, francamente, são meio empobrecedores… Era preciso fazer Ubiratan falar de Sagarana ou de Memórias do Cárcere, ou de Stálin e sua filha? Será que, em vez de se fixar na vida dos meninos, tão interessante (e uma parte dela fica na sombra, principalmente os pais de Eduardo), ele tem de nos fazer aturar falas de Ubiratan como a seguinte: “Sabem o que foi Guernica? Sabem o que significou? A carnificina? O bombardeio? A matança de crianças, velhos e mulheres? Sabem? A ascensão do fascismo? Sabem da Guerra Civil Espanhola? Picasso?”
Por esse motivo, Se eu fechar os olhos agora enfraquece de forma considerável da metade em diante. E o seu final é chocho, a meu ver: ao focalizar Paulo adulto, tentando saber do destino de Eduardo, ele não consegue dar uma idéia de trajetória, de formação, e nada significativo vem à tona.
O momento Dália Negra, momento do mistério do mundo para os garotos, momento em que eles podem se imaginar detetives e reconstruir a cadeia de fatos, se mostra mais forte e vívido do que o momento do desmascaramento, onde tudo é revoltante, mas um tanto óbvio.
A DÁLIA NEGRA DOS TRÓPICOS
Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em “A Tribuna” de Santos em 19 de janeiro de 2010
Até a metade, Se eu fechar os olhos agora (romance de estreia do jornalista Edney Silvestre) é excelente: em 1961 (dia em que Iuri Gagárin deu a volta ao planeta no espaço), numa cidadezinha do interior do Rio, dois meninos de 12 anos, Paulo e Eduardo, encontram o cadáver mutilado da mulher do dentista, a qual era a “vagabunda” da cidade (“uma mulher permanentemente aberta à visitação pública”).
Paulo e Eduardo (este, o narrador da história) não conseguem acreditar na confissão (e em seguida, no “suicídio”) do marido de Anita e tentam investigar o crime mesmo não entendendo as motivações e códigos de conduta dos adultos: “Mais uma vez não conseguiu fechar o raciocínio. Mais uma vez estacava diante do paredão do mundo adulto, por trás do qual havia regras que não tinha como entender”.
Os dois aliam-se a um velho do asilo local, Ubiratan (que fora torturado pela ditadura getulista), um forasteiro, e aos poucos, se monta um desmoralizante painel de exploração sexual, de machismo, de racismo, de desfaçatez patriarcal (que remonta aos plantadores de café, os quais fizeram a antiga riqueza da região), de incesto. De uma espécie de Dália Negra tropical (cadáver de mulher encontrado, sugerindo perversões e motivações sexuais patológicas) vamos nos encaminhando para um Chinatown (os podres dos muito ricos e poderosos), a obra-prima de Polanski, na qual a protagonista procurava a irmã que era na verdade a filha que teve com o próprio pai.
A ignorância dos meninos, apesar da sua curiosidade, e a decisão coletiva de acobertamento do que está por trás do assassinato de Anita (na verdade, Aparecida, nascida na fazenda da família do prefeito, fruto do estupro de uma criada negra, efetuado pelo pai dele, um senador; como a filha nasceu com a tez muito branca, denunciando o abuso, mandaram-na para um orfanato, e depois a obrigaram a casar com o dentista, muito mais velho, que tinha um pacto de cumplicidade com ex-colegas de seminário e a partir do casamento explorou sexualmente, de forma sistemática, a jovem esposa, assistindo e fotografando as orgias de que ela fez parte).
É a participação de Ubiratan que estraga a segunda metade e enfraquece consideravelmente Se eu fechar os olhos agora. Por certo, seria preciso um adulto para reconhecer o fio da meada, já que isso era impossível à ingênua dupla de protagonistas. Mas o problema é que a narrativa, que começara de forma muito interessante, como exercício das incertezas e sensações da memória, escorrega no moralismo e na falta de confiança na inteligência do leitor, que ele coloca no nível de informação dos garotos de 12 anos.
O velho militante comunista fica a todo momento fazendo paralelos históricos e evocando injustiças e atrocidades do século XX, de uma forma irritante e até constrangedora: “Sabem o que foi Guernica? Sabem o que significou? A carnificina? O bombardeio? A matança de crianças, velhos e mulheres? Sabem? A ascensão do fascismo? Sabem da Guerra Civil Espanhola?Picasso?” Por incrível que pareça, Edney Silvestre, nós sabemos, sim, e não é desta maneira que uma ficção consegue dar conta dos fatos históricos. Basta lembrar da perícia com que Leite Derramado tocou na ferida do racismo (que também é muito presente em Se eu fechar os olhos agora), sem apelar para o didatismo ou o discurso inflamado. Como diz o verso maravilhoso de Drummond, “que tristes são as coisas quando consideradas sem ênfase”. A história de Anita/Aparecida é muito triste, sem precisar dessas diatribes melodramáticas.
O final do livro é também decepcionante, ao mostrar Paulo já adulto, tentando localizar Eduardo. Não há nenhum dado novo, nada que dê ideia da formação dos personagens, a partir dos fatos que viveram em 1961, e cuja repercussão em suas vidas futuras, Eduardo intui, após a advertência do diretor da escola onde estudam: “e se não houvesse futuro para ele? O futuro que até esta manhã, na sala do diretor do colégio, lhe parecera garantido? E se no Brasil, refletia, neste Brasil novo em que surgiam indústrias, estradas, empregos, e se neste Brasil novo, mesmo sendo uma democracia como os professores ensinavam, onde nós o povo, temos eleições livres e decidimos quem vai nos governar, e se neste Brasil houvesse poderes, forças que ele não sabia dizer quais eram,ou o que eram, nem tampouco apontar onde estavam, e se as houvesse, essas forças, esses poderes capazes de decidir o destino dele, sem que ele pudesse intervir? Alterar tudo sem chance de retorno? Como no dia em que retiraram Aparecida do orfanato para casá-la com o dentista?”)…
Mesmo com esses altos e baixos, tudo indica que temos um novo romancista na praça. E cheio de gás e talento…
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