MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

07/02/2012

A travessia do Atlãntico de Jules Verne: UMA CIDADE FLUTUANTE


 

    Uma cidade flutuante (Une ville flottante) é um dos textos mais originais de Jules Verne: publicado de forma seriada em 1870, e em livro um ano depois, situado—portanto—entre os formidáveis Vinte mil léguas submarinas (1870)& A volta ao mundo em 80 dias (1872), é um relato de viagem muito vívido e colorido que tenta se disfarçar de ficção, de romance. Hoje em dia, como a narrativa jornalística ganhou uma dignidade maior, ele seria mais bem aceito; creio que, na sua época, suas características híbridas levaram a considerar um romance falhado e uma narrativa de viagem um tanto falseada.

   A origem do texto está na viagem que Verne fez em 1867 no transatlântico (era o Titanic da época) Great Eastern. Assim, o grande escritor francês visitou os EUA, Nova York, Albany, as cataratas do Niágara. Mas a grande aventura mesmo é o próprio transatlântico, que reproduz balzaquianamente a sociedade do século XIX em seus conveses e cobertas. Esse caráter de microcosmo quase alegórico é o que ele enfatiza e parece tê-lo fascinado: o fato de algo artificial, criado com toda a tecnologia disponível (que, entretanto, falha tantas vezes) acabar espelhando a sociedade que o criou: “Se o Great Eastern não é apenas uma máquina náutica, se é um microcosmo e carrega um mundo consigo, um observador não se espantará de ali encontrar, como num teatro maior, todos os instintos, todos os ridículos, todas as paixões do homem” [1]. Daí o título, daí a seleção de  incidentes e vinhetas que Verne recolhe da viagem, se não contarmos com o puerilíssimo entrecho sentimental (que também tem algo de melodrama balzaquiano): o casal contrariado em seu amor, Fabian MacElwin e Ellen Drake. Apaixonada por ele, ela foi obrigada pelo pai a se casar com o aventureiro, apostador inveterado e mau-caráter Henry Drake.

  O narrador conhece de outros carnavais Fabian e o encontra, melancólico e sorumbático a bordo do Great Eastern. No folclore da viagem, há a aparição de uma mulher de preto chorosa, que ninguém sabe de onde veio. Ao longo da travessia marítima, que é bem menos veloz do que se esperava, o narrador tem a oportunidade de saber que Henry Drake também está viajando no transatlântico e ele e outro amigo (Corsican) tentam evitar o encontro-confronto.

   Porém, as coisas se complicam (devido à mania de apostas de Drake) e um duelo é inevitável. Descobrimos que a mulher de preto é a própria Ellen, vítima de uma loucura temporária.

   Tudo é uma bobagem divertida e o clímax então é maravilhoso: na hora exata do duelo, há uma tempestade impressionante e Drake é fulminado por um raio. Isso é que é solução deus ex-machina!

   Todavia, o que importa mesmo, a meu ver, na leitura de A cidade flutuante são as pequenas observações digamos “sociais”, o lado meio A montanha mágica de como a rotina e o cotidiano são disciplinados a bordo, até com contratempos, possibilidades desastrosas, atrasos etc. Nesse aspecto, Verne mostra seus dotes de escritor e não apenas de visionário: “Eram os primeiros dias bonitos.  O sol, que já teria coberto de verde os campos do continente fez brotarem no navio trajes mais frescos. A vegetação às vezes atrasa, a moda jamais. Logo surgiram numerosos grupos de pessoas passeando pelas avenidas. Como nos Campos Elísios…” etc etc.

   Para dar um realce mais pitoresco a essas vinhetas, Verne lança mão de um personagem peculiar e com opiniões desconcertantes, o dr. Dean Pitferge, que está sempre na expectativa do naufrágio do navio (isso será aproveitado no delicioso final da narrativa): “Desenfreado, o médico teria continuado muito tempo nesse tom, mas outros passageiros  desfilavam diante de nossos olhos e provocavam novas observações do tagarela. Que variedade de tipos nessa multidão de passageiros! Nenhum flâneur, é claro, porque ninguém se desloca de um continente  a outro sem um motivo certo. A maioria, sem a menor dúvida,  estaria indo atrás de fortuna nessa terra americana, esquecendo que aos 20 anos um yankee já tem uma posição e aos 25 está velho demais para entrar na luta…”

   Tenho em mãos duas edições brasileiras recentes: uma, da coleção de Verne lançada em bancas pela obscura RBA. Essa coleção a principio nem trazia nome de tradutores, porém a certa altura eles começaram a aparecer. O volume em questão traz, além de Uma cidade flutuante, outro pequeno romance híbrido, Os violadores do bloqueio. O tradutor é Pedro Guilherme dos Santos Dinis.

   A tradução que tenho citado aqui é a de Beatriz Sidou lançada numa simpática coleção chamada “Em conserva” pela Artes & Letras de Curitiba: são pequenos volumes que vêm dentro de uma lata. É uma pena que a revisão e os cuidados editoriais com o texto propriamente dito sabotem a iniciativa tão atraente. Há inúmeros erros ao longo do texto, não se deram ao trabalho de colocar nem ao menos o título original e não há nenhuma informação sobre o texto de Verne que o apresente ao leitor de hoje. Suponhamos um jovem leitor que fique atraído (compreensivelmente) pela lata que contém Uma cidade flutuante: caberá a ele todo o trabalho de localizar no tempo, no espaço e na literatura esse título. Convenhamos que um leitor interessado e inteligente faz isso naturalmente, contudo a editora (já que teve essa iniciativa tão bacana) podia dar uma forcinha, uma apresentação básica e didática. Pois o fato de que Verne embarcou ele mesmo nessa viagem não é de modo algum  irrelevante para o tipo de narrativa que estamos lendo, não é?


[1] Utilizo uma tradução de Beatriz Sidou. Há uma analogia do transatlântico com Londres, que lembra até um trecho dickensiniano (o início de Casa soturna, por exemplo): A coberta  ainda não era mais do que um imenso canteiro de obras entregue a um exército de trabalhadores. Eu não conseguia me convencer que estava a bordo de um navio. Muitos milhares de homens, operários, pessoal da tripulação, mecânicos, oficiais, manobristas e curiosos se cruzavam, acotovelavam-se sem se incomodar, uns no passadiço, outros nas máquinas, estes correndo os camarotes, aqueles espalhados pela mastreação, todos numa confusão que foge a qualquer descrição. Aqui, as gruas móveis erguiam enormes peças de ferro fundido e ali, pesados pranchões de madeira eram içados com a ajuda de guindastes a vapor (…) Construía-se,ajustava-se, martelava-se, aparelhava-se a embarcação, polia-se tudo, no meio de uma desordem incomparável (…) Decidi então visitar todos os buracos daquele imenso formigueiro, e comecei meu passeio como teria feito um turista em alguma cidade desconhecida. Uma lama negra—esse lodo britânico que se gruda no pavimento das cidades inglesas—cobria todo o convés do vapor. Regatos fétidos escorriam aqui e ali. Podia-se acreditar estar em um dos piores trechos da Upper Thames Street, nas vizinhanças da ponte de Londres…”

13 Comentários »

  1. que interessante! a tradução de dinis é um desses autênticos textos em domínio público – ela saiu em portugal em 1887! e no brasil, pela francisco alves, no comecinho do século XX – a referência quee tenho é de 1914, em sua terceira edição, para vc ter uma ideia. aliás, a edição da bertrand, cuja capa tb consta em seu artigo, retoma essa tradução do dinis.

    não conhecia essa editora rba – acho legal isso de resgatarem traduções em domínio público: ganha-se um certo sabor linguístico que perdemos, e decerto barateia bem o custo da edição.

    a iniciativa da arte & letra é bem legal, sim: que pena os problemas de revisão, pena mesmo…

    Comentário por denise bottmann — 07/02/2012 @ 14:19 | Responder

    • A RBA é de Barcelona e a coleção foi impressa na Espanha, e lembra muito as coleções antigas de Verne, as quais aliás eu li bastante quando era garoto. O problema é que nos primeiros volumes os textos pareciam saídos do nada, sem indicação nenhuma, e mesmo quando eles começaram a identificar tradutores, há algo de esquisito, de antigo, por isso é bem-vinda essa informação sua de quem é o Dinis. Valeu, Denise.

      Comentário por alfredomonte — 07/02/2012 @ 15:09 | Responder

  2. ah, legal, rba é uma editora portuguesa que publicou o verne completo em portugal, tb para bancas, e chegou em 2009 ao brasil. vivendo e aprendendo… obg por me despertar a curiosidade por ela!
    http://jvernept.blogspot.com/2009/05/colecao-da-rba-chegou-ao-brasil.html

    Comentário por denise bottmann — 07/02/2012 @ 15:11 | Responder

  3. ops, nossos comentários se cruzaram. ok, então, obrigada!

    Comentário por denise bottmann — 07/02/2012 @ 15:13 | Responder

    • Ó que é riste é o caso de Artes & Letras: adoro a latinha com os livros mas sequer colocarem o título original. O lado meio antigo da RBA e a falta de referências e indicações nã é muito justificável, mas se explica pelo tipo de lançamento (com a exceção sempre notável da Abril Cultural de antigamente), mas me pareceria que a editora de Curitiba tinha cacife para maior esmero.
      Mas seus comentários sempre são um prazer, Denise. Obrigado.

      Comentário por alfredomonte — 07/02/2012 @ 15:51 | Responder

  4. Ótima dica, assim que sair do labirinto de paredes de poeira do Sebald embarcarei nessa, as imagens me lembraram a ilha flutuante das Viagens de Gulliver.

    abraço

    Comentário por hudson — 07/02/2012 @ 16:44 | Responder

    • Caro Hudson, eu já estive perdido nos labirintos sebaldianos e sei bem o que é isso.
      Obrigado pelo seu comentário. Abração.

      Comentário por alfredomonte — 08/02/2012 @ 10:17 | Responder

  5. Monte,
    Como sempre um belo texto, que só me faz querer voltar sempre.
    A propósito, ao longo da leitura, fiquei pensando se já não vi por aqui (ou desejaria ver) um comentário de A Taça Dourada (ou de Ouro), de H. James.
    Amitiés,
    BetoQ.

    Comentário por Adalberto Queiroz — 10/02/2012 @ 4:15 | Responder

    • Não, caro BetoQ. Eu tenho uma resenha sobre o livro publicada há anos pela TRIBUNA de Santos, mas ainda não a transcrevi para o blog. Vou fazê-lo, estou esperando localizar meus textos todos sobre Henry James (são muitos) para fazer uma quinzena jamesiana, talvez no terceiro aniversário do blog, em abril.
      Obrigado, e um grande abraço.

      Comentário por alfredomonte — 12/02/2012 @ 11:27 | Responder

      • que coincidência: armei-me de paciência e estou fazendo um levantamento das trad. de james no brasil. aliás, andei me abastecendo de umas capitas aqui em seu blog :-))

        Comentário por denise bottmann — 12/02/2012 @ 12:41

      • É, Denise, a situação do James é ainda pior do que a de Conrad (cujos principais livros pelo menos estão traduzidos no Brasil): é uma vergonha o tanto de obras dele que não foram traduzidas. E há os casos grotescos, como a edição da Ediouro de AS ASAS DA POMBA, onde na contracapa resumem de forma errada a história, com detalhes que não constam do texto (acho que a pessoa que redigiu viu só o filme com Helena Bonhan-Carter e acreditou piamente que podia dar conta do recado)
        Abração.

        Comentário por alfredomonte — 12/02/2012 @ 12:52

      • Vou esperar, meu caro.

        Comentário por Adalberto Queiroz — 12/02/2012 @ 18:01

  6. Uêba! Aguardo abril pra ver a quinzena Jamesiana. Por ora, vou voltar sempre pra ver novidades como Baudelaire, sobre o qual pensava hoje cedo em um longo comentário, como francófono e francófilo.
    Até já.
    BetoQ.

    Comentário por Adalberto Queiroz — 13/02/2012 @ 10:52 | Responder


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