“De vilão a mártir a quase um joão-ninguém—isso não era injusto? Seus defensores tinham garantido que seu caso era tão importante quanto o de Dreyfus, que ele revelava tanto a respeito da Inglaterra quanto o do francês sobre a França, e assim como tinha havido os que eram a favor e aqueles que eram contra Dreyfus, houve os que eram a favor e os que eram contra Edalji. Eles insistiram ainda que em Sir Arthur Conan Doyle ele tinha um defensor tão importante, e um escritor melhor, do que o francês teve em Émile Zola, cujos livros eram considerados vulgares e que fugiu para a Inglaterra quando foi ameaçado com a prisão. Imagine Sir Arthur correndo para Paris, a fim de fugir de algum político ou promotor. Ele teria ficado e lutado, e teria feito muito barulho e sacudido as grades de sua cela até derrubar a prisão.
E, no entanto, apesar de tudo isso,a fama de Dreyfus tinha crescido e seu nome agora era conhecido nu mundo inteiro, enquanto o de Edalji mal era conhecido em Wolverhampton (…)ele suspeitava que a sua obscuridade tinha a ver com a própria Inglaterra. A França, no seu entendimento, era um país de extremos, de opiniões veementes, princípios extremados e memória longa. A Inglaterra era um lugar mais calmo, com os mesmos princípios sólidos, mas que não gostava de fazer tanto alarde deles; um lugar onde se confiava mais na lei comum do que nos decretos do governo, onde as pessoas cuidavam da própria vida e procuravam não interferir na vida dos outros, onde aconteciam grandes comoções públicas de vez em quando, comoções que podiam até resultar em violência e injustiça, mas que logo eram esquecidas e que raramente passavam para a história do país. Isto aconteceu, agora vamos esquecer e continuar como antes: este era o jeito inglês de ser. Houve um erro, algo se quebrou, mas agora foi consertado, então vamos fingir que não foi um erro muito grande. O caso Edalji não ocorreria se houvesse uma corte de apelação? Muito bem, então concedam um indulto a Edalji, criem uma corte de apelação antes de terminar o ano—e não há mais nada a dizer sobre o assunto. Assim era a Inglaterra, e George era capaz de compreender o ponto de vista da Inglaterra, porque George era inglês…”
(a resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 24 de janeiro de 2012)
Julian Barnes (autor de um pequeno clássico contemporâneo, O papagaio de Flaubert) venceu o Booker Prize 2011. Mas ele já havia chegado bem perto dessa badalada (e tantas vezes discutível) premiação com Arthur & George1 (Inglaterra, 2005, traduzido para a Rocco por Léa Viveiros de Castro), onde recria as circunstâncias e reverberações de um erro judicial no Reino Unido, em 1903, motivado por racismo, das quais participou Arthur Conan Doyle.
Antes que se envolva com a história de George Edalji (filho de um parse nativo de Bombaim e uma escocesa), acompanhamos a trajetória do criador de Sherlock Holmes, um self made man que resgata sua família da pobreza, e que de fracassado oftalmologista, a partir do momento que resolve escrever ficção popular, se torna um dos homens mais célebres e venerados de um período que vai do final dos anos 1880 até sua morte, em 1930.
Sua esposa, por quem tem mais amizade do que um sentimento verdadeiramente amoroso, contrai tuberculose, vivendo como eterna moribunda (só que por muitos anos), e ele se apaixona por uma mulher mais jovem (que virá a ser a segunda esposa).
Além da existência oficial e prestigiosa, e desse dilema “cavalheiresco” (o termo não é exagerado nem indevido, como verá quem ler o romance de Barnes: Doyle fica parecendo um herói conradiano), ele deixa-se converter e absorver pelos caminhos do espiritismo, a seu ver uma etapa natural do descortínio científico, tão galopante à sua época, que iria varrer os preconceitos e superstições das religiões institucionalizadas.
A esposa morre enfim, e de repente Doyle vive um momento de depressão e letargia, sentimentos pouco comuns a esse homem enérgico e produtivo. É nessa fase crítica que sua atenção se volta para o drama de Edalji. O pai deste é pastor anglicano numa região pra lá de atrasada (e sem nenhuma Jane Austen que lhe dê a mínima pátina de encanto), e desde que o filho era adolescente, a família sofreu uma campanha de cartas anônimas, difamações, intimidação por parte das autoridades policiais locais (que sempre implicaram com George, por ser “esquisito” e lhe fizeram acusações estranhas).
Quando o “mestiço” já é um advogado atuante (trabalha em Birmingham, contudo volta todos os dias para a casa paroquial 2), vários animais da região são mutilados, e ele passa a ser considerado o único suspeito. É preso, julgado, considerado tanto autor dos crimes quanto das próprias cartas anônimas, que tantos transtornos trouxeram à sua família (há peritos, depois desacreditados por outros a quem Doyle recorrerá, que afirmam que sua caligrafia é a mesma dessas missivas), e condenado a sete anos de trabalhos forçados. Libertado após cumprir metade da sua pena, procura limpar seu nome e conseguir reparações do Ministério do Interior (não havia tribunais de apelação naquele tempo, seu caso é que vai dar ensejo para a criação deles).
E aí entra Doyle em cena, dando uma de Holmes e iniciando não só uma campanha através da imprensa, como assumindo uma investigação que fora negligenciada pela polícia. E conforme o escritor familiariza-se com as pessoas e os detalhes do caso nas aldeias, “vórtices de falatórios”, o leitor se defronta com a estupidez, as idéias preconcebidas, a arrogância de classe, os estereótipos sobre raças, a avidez gananciosa e todos os defeitos grotescos da humanidade num “país de ponta”, no qual as pessoas se sentiam tão mais civilizadas e superiores que os demais cidadãos do mundo.
O mais interessante, no entanto, com relação a Arthur & George, além dessa notável recriação da mentalidade em meio à qual foi julgado o caso Edalji, é que a investigação não se conclui e várias pontas ficam soltas, No fundo, é como a pesquisa do mundo dos espíritos, o grande projeto de Doyle: indícios, trilhas promissoras, porém a conta não fecha e se tem de movimentar na neblina.
Ao contrapor de forma tão elegante e delicada as trajetórias de , por um lado, um homem que fez tanto sucesso (e que entretanto criou um “fantasma” que adquiriu mais peso e realidade que ele mesmo, e com o qual foi muitas vezes confundido), que acumulou uma existência “material” tão imponente, e por outro, de um homem que viu se esboroarem todas as suas expectativas e perspectivas, ao fim e ao cabo, Barnes nos propõe uma meditação sobre a fragilidade da vida e a mortalidade, no que ela tem de menos melodramático e mais entranhado ao nosso próprio existir.
Em 1930, George Edalji vai a uma cerimônia espírita em função da morte de seu protetor, em Londres (onde vive então) e, dando um passeio pelo Hyde Park, antes da cerimônia, tem um momento digno da mrs. Dalloway de Virginia Woolf:”naquele momento George foi abalado pelo pensamento de que todo mundo ia morrer. Às vezes, ele refletia sobre sua própria morte; ele tinha chorado a morte dos pais—seu pai, doze anos antes, sua mãe, seis; ele tinha lido obituários nos jornais e tinha comparecido a enterro de colegas; e estava ali para o grande adeus a Sir Arthur. Mas nunca antes ele tinha entendido—embora fosse mais uma percepção visceral do que uma compreensão mental—que todo mundo ia morrer (…) Mas quando você se via em Hyde Park numa quente tarde de verão, no meio de milhares de outros seres humanos, poucos dos quais provavelmente pensando na morte, era mais difícil de acreditar que esta coisa intensa e complicada chamada vida pudesse ser apenas um acontecimento ao acaso num planeta obscuro, um breve momento de luz entre duas eternidades de escuridão. Num momento desses, era possível sentir que toda essa vitalidade tinha de continuar de alguma forma, em algum lugar. George sabia que não estava prestes a sucumbir a um súbito sentimento religioso (…) Ele também sabia que, sem dúvida, continuaria a viver da mesma forma como sempre vivera, observando como o resto do país—e principalmente por causa de Maud—os rituais da igreja Anglicana, observando-os de um modo imprecisamente esperançoso até morrer, quando então descobriria a verdade a respeito do assunto ou, o que era mais provável, não descobriria nada. Mas hoje (…) ele pensou enxergar um pouco do que Sir Arthur tinha visto…”
O real e o sobrenatural, igualmente inquietantes e cheios de mistérios insolúveis para qualquer candidato a Sherlock: “Em todo caso, sua mente tinha encalhado na expressão ´mundo real´. Com que facilidade todo mundo entendia o que era real e o que não era. O mundo no qual um jovem advogado ingênuo era condenado a trabalhos forçados em Portland…o mundo no qual Holmes solucionava qualquer mistério que estava além da capacidade de Lestrade e seus colegas… o mundo do além, o mundo atrás da porta fechada que Touie [apelido familiar da primeira esposa de Doyle] tinha atravessado tão facilmente. Algumas pessoas acreditavam em apenas um desses mundos, outras em dois,umas poucas nos três. Por que as pessoas imaginavam que o progresso consistia em acreditar em menos coisas, em vez de acreditar em mais coisas, em se abrir mais para o universo?”
1 Perdeu para O mar, de John Banville.
2 É preciso dizer que há elementos esquisitíssimos na vida dessa família (mas de perto quem é normal?). Desde que George era garoto, ele dorme no quarto com o pai, enquanto a mãe dorme no quarto com a irmã, que é meio adoentada (mais tarde, ela será uma companheira de toda a vida, no comovente quadro que o autor traça dos Edaljis após a morte de Conan Doyle). Quando a prisão de George ocorre, ele está com 27 anos, e ainda dorme com o pai (embora haja um quarto vago na casa paroquial, pois o outro irmão vive longe), o qual tranca a porta todas as noites. Não há nada sexual nisso, só quero dizer que é uma existência das mais estranhas para um homem adulto, e esse fato pesará muito contra ele no julgamento. Há até o boçal do chefe da polícia local (num diálogo tenso e provocativo com Doyle) que abraça a teoria de que “os olhos saltados” de George indicam um grande apetite sexual, que só foi se tornando mais reprimido e violento com essa rotina!
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