MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

03/10/2011

O NOBEL DO NÔMADE


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Parece que de meio século para cá a literatura francesa só entra nos cálculos para o Nobel de vinte em vinte anos. Pelo menos quando escolhem um francês, acertam em cheio. Em 1964, Jean-Paul Sartre teve a chance de esnobar sua premiação e utilizá-la como plataforma para declarações políticas bombásticas (e isso no ano em que escrevia um de seus textos supremos, As Palavras, na qual tentava exorcizar e liquidar sua “neurose da literatura”). Em 1985 (portanto, vinte e um anos depois), o mundo descobria maravilhado um autor original, desconcertante, detentor do segredo de uma maneira de narrar extremamente pessoal: o genial Claude Simon, que tem pelo menos dois “romances” extraordinários publicados no Brasil: A Estrada de Flandres e As Geórgicas (infelizmente, não traduziram o fascinante Histoire).

Agora, vinte e três anos passados (se não se contar a premiação, em 2000, do chinês naturalizado Gao Xingjian), chega a vez de Jean-Marie Gustave Le Clézio. Nome chiquíssimo, que podia ser de grife de alta-costura. Não é. J.M.G. Le Clézio, como eu já afirmei na semana passada  (VER ABAIXO) com relação a ele e a Patrick Modiano (o qual, tenho quase certeza, utilizou o colega como modelo para um dos personagens de Rue des Boutiques Obscures; os dados familiares são muito parecidos), é um dos poucos sobreviventes da irrelevância que faz da França atualmente uma “waste land” em termos literários. Tanto que durante muitos anos um autor cotadíssimo para o prêmio, considerado algo assim como o “maior autor francês da atualidade”, era o medíocre Michel Tournier, que em obras mais recentes revelou a sua verdadeira ambição oculta (e alcance de vôo estético): ser Paulo Coelho versão Astérix.

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No meu artigo da semana passada também chamei Le Clézio de “intrigante”.  É lógico que desde que soube do prêmio não tive chance de reler nenhuma de suas obras (devo informar que só conheço três: Deserto, À Procura do Ouro e A Quarentena; se a vida fosse ideal, teríamos tempo de acompanhar integralmente a carreira dos escritores que admiramos, contudo, como é tudo que ela não é, nunca dá para ler tudo o que queremos; há anos tento reservar tempo para conhecer o primeiro e consagrado romance dele, Le Procès-Verbal, e não consigo sequer ler as duas últimas traduções que fizeram aqui no Brasil: Peixe Dourado e O Africano!), mas andei pensando nesse termo que escolhi. Intrigante. Acho que deveria dizer “sortudo”.

Há escritores que além do talento e do fôlego narrativo, além da finura e virtuosismo estilísticos, ainda por cima têm sorte. Le Clézio é um grande escritor, disso não há dúvida, só que ainda teve atrás de si uma família romanesca, que emigrou da Bretanha para a Ilha Maurício (e depois refez o caminho inverso, processo reconstruído e desconstruído pelo autor de Deserto). E não só isso: ao começar a escrever, no início dos anos 60, ele pegou toda a onda final do colonialismo francês (e da Europa em geral) e aplicou a esse cenário seu temperamento muito peculiar de nômade introspectivo, fazendo da viagem um mote narrativo e das “paradas obrigatórias” (como no maravilhoso capítulo de À Procura do Ouro em que “prisioneiro do mar”, retido na enseada dos Anglais, o narrador revê a configuração da sua vida e jornada) mergulhos em profundidade na condição humana (vista sob uma lente mais ampla e minuciosa do que o tradicional ponto de vista eurocêntrico). Ainda que eu considere Deserto e A Quarentena dois dos melhores e mais requintados romances das últimas décadas, e literariamente superiores, confesso que minha preferência recai sobre À Procura do Ouro por duas razões principais, embora nem um pouco racionais. Em primeiro lugar, assim como uma parte da obra de Robert Louis Stevenson (A Ilha do Tesouro e as aventuras de David Balfour, como Raptado), o livro me faz voltar à infância, quando eu não queria literatura, queria aventura, e agora que a aventura se foi (pelo menos da maneira como eu a idealizava), ficou a literatura; então, que elas pelo menos coincidam uma vez ou outra, que um livro mostre uma caça ao tesouro em cenários variados e “exóticos”, enquanto o narrador se auto-esclarece tanto quanto o Marcel de Em Busca do Tempo Perdido ou o Jim de Lord Jim ou o Riobaldo de Grande Sertão: Veredas. Em segundo lugar, é isso aí: por alguma razão do destino, o francês Le Clézio realizou a mais estranha (e aí sim posso recolocar o adjetivo “intrigante”) simbiose concebível: entre Conrad e Proust, a aventura se tornando uma constituição da subjetividade, da memória e da ressignificação dos seres e das coisas, Não me lembro de nenhum caso parecido, ou no qual isso se dê de modo tão natural.

Outro grande escritor contemporâneo, o espanhol Juan Goytisolo, disse: A intimidade e a distância criam uma situação privilegiada. Ambas são necessárias”. Jacques Derrida convidava os leitores a “pensar em viagem. Devo essas duas citações a Zygmunt Bauman que, no final de Modernidade Líquida afirmava que o exílio (não necessariamente político) faz bem ao escritor. Intimidade com a língua, distância dos modos usuais e automáticos. E as seguintes palavras servem como uma luva a J.M.G. Le Clézio, esse escritor do nomadismo e da viagem incessante: “Em vez de ser sem pátria, o segredo é estar à vontade em muitas pátrias, porém estar em cada uma ao mesmo tempo dentro e fora, combinar a intimidade com a visão crítica de um estranho, envolvimento com distância, o que as pessoas sedentárias  dificilmente aprendem… A liberdade que vem dessa condição (que é essa condição) revela que as verdades caseiras são feitas e desfeitas pelo homem e que a língua materna é um fluxo infindável de comunicação entre as gerações e um tesouro de mensagens sempre mais ricas que quaisquer de suas leituras e sempre à espera de serem novamente reveladas”.

Em tempo: me parece que o Nobel está se revelando um prêmio mais vivo do que se podia esperar.

resenha publicada originalmente em 11 de outubro de 2008, em A TRIBUNA de Santos

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E O NOBEL VAI PARA…

Com o tardio e justíssimo prêmio para Doris Lessing no ano passado, e mais três autores de língua inglesa laureados nesta última década (V. S. Naipaul, J. M. Coetzee e Harold Pinter), é melhor esquecê-la nas apostas para o Nobel de 2008 (a não ser que haja uma surpresa), o que significa excluir uma série de grandes escritores, inclusive os dois autores vivos que, a meu ver, são os que mais merecem o prêmio: o norte-americano Don DeLillo (o que existe de melhor que Mao II, Submundo e Cosmópolis?) e o anglo-indiano Salman Rushdie (é difícil dizer qual a sua grande obra: Os Filhos da Meia-Noite, O Último Suspiro do Mouro, Os Versos Satânicos, Fúria).

Então, nada mais natural do que ele ir para o italiano Umberto Eco, não só um prodigioso intelectual, como ainda autor de uma já considerável obra ficcional, entre eles o clássico O Nome da Rosa. Nessa linha, aliás, a Itália é imbatível em candidatos, basta lembrar de Carlo Ginzburg (O Queijo e Os Vermes), Pietro Citati (autor de fascinantes biografias, entre elas as de Proust e Goethe) e Roberto Calasso (Ka e K.), os quais conciliam o talento narrativo com o rigor como pensadores.

Além de Eco, outro vencedor natural deveria ser o peruano Mario Vargas Llosa (Conversa na Catedral, A Guerra do Fim do Mundo, Lituma nos Andes, só para citar uns poucos títulos de uma produção com poucos escorregões, o que não se pode dizer da carreira política de Llosa), mas a Argentina conta com o venerável, grandioso e quase centenário (daqui a três anos) Ernesto Sabato (e como esquecer Sobre Heróis e Tumbas, O Túnel e Abadón, O Exterminador ?); e o Uruguai e o México têm os octogenários Mario Benedetti (A Trégua, A Borra do Café) e Carlos Fuentes (Aura, A Morte de Artemio Cruz, Cristóvão Nonato, Gringo Velho). Na Argentina, dois dos melhores autores contemporâneos pertencem a gerações mais recentes, Ricardo Piglia (A Cidade Ausente, Respiração Artificial) e Alan Pauls (fiquei apaixonado por O Passado e agora estou apaixonado por Wasabi e História do Pranto).

Aqui também temos os nossos veneráveis e ótimos candidatos: Dalton Trevisan (que título escolher do nosso gênio maior: Cemitério de Elefantes, A Trombeta do Anjo Vingador, O Vampiro de Curitiba, A Polaquinha?); Autran Dourado (O Risco do Bordado, Ópera dos Mortos, Novelário de Donga Novais, Armas & Corações), Adélia Prado (Bagagem, O Coração Disparado, O Pelicano). Em português também, como esquecer o moçambicano Mia Couto e suas obras-primas Terra Sonâmbula e A Varanda do Frangipani?

Voltando à Europa, o espanhol Jorge Semprún seria outro excelente candidato ao prêmio (ele ainda teve o requinte de escrever em outra língua, o francês), por livros como A Grande Viagem, A Segunda Morte de Ramón Mercader, Um Belo Domingo. Seu maior “rival”, por assim dizer, é o mestre da ironia Juan Goytisolo, autor de A Saga dos Marx.

Na França, o maior dos candidatos é um expatriado, o tcheco Milan Kundera, que passou a escrever na língua do seu país de adoção (A Identidade, A Ignorância), mas já era mais conhecido pelas traduções francesas das sua extraordinária obra anterior (A Brincadeira, A Valsa dos Adeuses, O Livro do Riso e do Esquecimento, Risíveis Amores, A Insustentável Leveza do Ser). É um dos que eu ficaria particularmente feliz se ganhasse. Entre os “nativos” (palavra cada vez mais problemática), por que não Patrick Modiano (Rue de Boutiques Obuscures, Ronda da Noite) ou o intrigante J. M. G. Le Clézio (Deserto, À Procura do Ouro, A Quarentena), ambos sobreviventes honrosos do apocalipse de insignificância e irrelevância daquela que foi a pátria oficial da literatura?

Na Alemanha, o primeiro nome que vem à cabeça é o de Christa Wolf (Kassandra, Em Busca de Christa T.), embora o desafiador Tankred Dorst (Merlim) e Peter Handke (O Medo do Goleiro Diante do Pênalti) não possam ser esquecidos. Como não se pode esquecer o  holandês Cees Nooteboom (Rituais, A Seguinte História:)

Três nomes fortes (e que estão entre os meus preferidos) se encontram mais à margem do Ocidente: o albanês Ismail Kadaré (Dossiê H, Abril Despedaçado, O Palácio dos Sonhos); o israelense Amós Oz (do soberbo A Caixa Preta e do recém-lançado Rimas de Vida e Morte), ambos fantásticos romancistas; e o genial servo-croata Milorad Pávitch (O Dicionário Kazar, Paisagem Pintada com Chá).

Na verdade, na verdade, NA VERDADE, o que eu gostaria mesmo é que o Nobel abrisse uma exceção e se fizesse póstumo para homenagear a vida breve, mas a longa arte do chileno Roberto Bolaño, que morreu em 2003, com 50 anos apenas, e cuja obra (especialmente Detetives Selvagens, só que temos também A Pista do Gelo, Putas Assassinas e a sua poesia, a sua poesia…) está mais do que viva, e agora é que estamos sentindo seu impacto. O mesmo se poderia dizer de outro morto precoce (2001), dono de uma obra seminal e cada vez mais importante: o alemão W.G. Sebald (Os Anéis de Saturno, Austerlitz).

(resenha publicada originalmente em 4 de outubro de 2008, em A TRIBUNA de Santos)

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