Este é mais um texto escrito em 2008 como leitura anotada para meu curso sobre obras de ficção curtas do século XIX, AS MARGENS DERRADEIRAS)
“Meu chapéu do Quartier Latin. Por Deus, devemos simplesmente trajar a personagem. Quero luvas castanho-arroxeadas.”
(James Joyce, Ulisses, 1922)
“Haldin fora enforcado às quatro horas. Ao que parecia, entrara em sua existência futura com botas de cano longo, gorro de pele de astracã e tudo o mais, até com o cinto de couro, Um tipo tremulante e evanescente de existência. Não fora sua alma, mas seu fantasma que Haldin deixara para trás nesta Terra…”
(Joseph Conrad, Sob os olhos do Ocidente, 1911)
“As cadeias da humanidade torturada são feitas de papel de escritório.”
(Franz Kafka, citado em Conversas com Kafka, de Gustav Janouch)
Não foi em Petersburgo que Nikolai Gógol nasceu (em 19 de março de 1809, mesmo ano de Edgar Alan Poe). Ele só foi para a capital em 1828, oriundo da Ucrânia. Segundo Solomon Volkov, acabou sendo o responsável pela dubiedade artística na apreensão da cidade: de visão paradisíaca e de grandeza (a de Pedro, o Grande, simbolizada na sua famosa estátua eqüestre, feita por Falconet e inaugurada em 1782) para o pólo infernal, degradado, os poetas e ficcionistas de Petersburgo oscilaram, pendendo muitas vezes para o segundo lado: “Essa fatal transformação foi inspirada por Nikolai Gógol, para quem Petersburgo nada mais era que um reino dos mortos em potencial, úmido, plano, uniforme, pálido, cinza e nevoento. Gógol considerava a cidade palco do bacanal de entes demoníacos hostis, cujo chão, sempre movediço, ameaçava engolir os prédios majestosos, as repartições públicas destituídas de alma e as multidões de seus medíocres funcionários.” [1]
E é justamente nessa atmosfera que se ambienta a mais famosa historia gogoliana, O Capote [2], a qual já se inicia com uma descrição mortífera da atmosfera da repartição pública e a mentalidade dos funcionários: “No ministério de… Não, é melhor não dizer seu nome. Ninguém é mais suscetível do que funcionários, empregados de repartições e gente da esfera pública. Nos dias que correm, todo sujeito acredita que se nós atingimos a sua pessoa, toda a sociedade foi ofendida. Recentemente, é o que dizem, o chefe de polícia de não sei qual cidade produziu um Informe no qual diz sem meias palavras que o respeito às leis se perdeu e que seu sagrado nome foi pronunciado em vão… Assim, para evitar suscetibilidades, chamemos o ministério em questão simplesmente de um certo ministério.”
Logo a seguir conhecemos um burocrata insignificante, de baixo escalão, um mero amanuense (essa figura do homem insignificante é um achado genial que repercutirá na obra de Dostoiévski, inclusive em Notas do Subterrâneo). Ele tem um nome infernal, Akaki Akakiévitch Bachmatchkin (e olhe que foi um tormento lhe dar um prenome, pois ao nascer, ao se consultar um almanaque, como era de praxe, as escolhas ficavam entre Moskia, Sosie, Cosdazat, Trifili, Dulas, Barachisi, Pausicaci e Bactici; a mãe, desesperada, acabou lhe dando o nome do pai).
Como é a aparência de Akaki Bachmatchkin? “…pequeno, raquítico, ruivo, tinha a vista curta, a testa calva, rugas ao longo das bochechas e uma destas peles com uma tonalidade que só poderíamos chamar de hemorroidosa… Que se pode fazer, a culpa é do clima de Petersburgo!” Ele é um desses funcionários que ninguém lembra quando entrou no serviço do ministério e quem o recomendara. Mudavam as chefias, ele estava sempre no mesmo posto: “Ninguém lhe votava qualquer consideração. Longe de se erguerem à sua passagem, os porteiros prestavam menos atenção à sua aproximação do que ao vôo de uma mosca. Seus superiores o tratavam com uma frieza despótica… Seus jovens colegas gastavam com ele o arsenal de gozações correntes na repartição.” A única reação do veterano amanuense era, quando as brincadeiras ultrapassavam os limites, um miserável lamento: “O que eu fiz para vocês?”
O único traço memorável de Akaki Akakiévitch era sua dedicação ao trabalho de transcrição. Fora das suas cópias, “nada mais parecia existir para ele”. Descuidado em sua aparência, “havia sempre um fio, uma fitinha, um pedacinho de palha grudado ao seu paletó. Tinha a virtude de se encontrar debaixo de uma janela no momento preciso em que por ela eram atirados toda sorte de detritos. Como resultado, cascas de melão, de melancia e de outras tralhas do mesmo gênero ornavam continuamente seu chapéu” ; também era indiferente ao mundo externo: “Nem uma só vez em sua vida ele prestou atenção ao espetáculo quotidiano da rua… Supondo-se que Akaki Akakiévitch pousasse os olhos sobre um objeto qualquer, ele perceberia nele linhas escritas em sua caligrafia clara e fluente”.
Como se vê, Gógol criou o homo burocraticus. Na sua casa, Akaki Akakiévitch nem se dá conta do que come, “engolia sem perceber que gosto tinha, juntamente com as moscas e todos os complementos que o bom Deus se dignara acrescentar conforme a estação”. Nas horas de folga, o que faz? Continua copiando documentos trazidos do ministério. Essa é a sua rotina “sob o céu cinzento de Petersburgo”. Ao se deitar, sorri pensando no dia seguinte: “que documentos a graça de Deus confiaria a ele para serem copiados?” e assim “nesta paz decorria a vida de um homem que com quatrocentos rublos de vencimentos se mostrava contente com a própria sorte”. Mas a fatalidade também espreita os amanuenses felizes: Akaki Akakiévitch possuía um inimigo: o clima da cidade. Aproxima-se o período de frio rigoroso, acompanhado pela neve incessante, e então o funcionário do ministério examina seu velho capote, o qual “alimentava também os sarcasmos de sua repartição”. Uma vestimenta com aspecto muito estranho, pois a gola diminuía ano a ano, já que servia para remendar outros lugares. A primeira idéia do Akaki Akakiévitch é levar seu capote ao alfaiate Petrovitch: “A porta do alfaiate estava aberta, sua considerada esposa tendo, ao fritar não se sabe que tipo de peixe, deixado escapar uma fumaça tão espessa que não era possível distinguir nem mesmo as baratas”. Quando sóbrio, o alfaiate tem um gênio irascível e condena sem apelo o capote de Akaki Akakiévitch. O melhor seria mandar confeccionar um casaco novo: “A palavra novo quase cegou Akaki Akakiévitch. Todos os objetos se embaralharam bruscamente diante de seus olhos numa espécie de bruma…” Onde arranjaria o dinheiro? Ao fim e ao cabo, seriam 80 rublos. No entanto, ele se priva do que pode (ou seja, quase tudo), gasta todas as suas economias e gratificações, e dá o passo mais corajoso da sua vida… manda fazer o novo casaco: “Foi em… Eu não saberia dizer, juro, exatamente a data em que Petrovitch entregou enfim o casaco. Akaki Akakiévitch não conheceu dia mais solene em toda a sua existência… Petrovitch parecia perfeitamente convencido de que realizara sua grande obra, estabelecendo de modo definitivo o abismo que separa um alfaiate de um remendão.” O casaco assenta com perfeição.No caminho para o trabalho, “Akaki Akakiévitch caminhava tomado pelo mais intenso júbilo. A sensação continuada do casaco novo sobre os ombros o mergulhava num devaneio que, por diversas vezes, arrancou dele pequenos sorrisos.”
No ministério, o casaco causa sensação, chovem os cumprimentos. Um subchefe resolve oferecer uma festa em sua residência em homenagem… ao casaco. Como nunca vai a lugar nenhum, Akaki Akakiévitch pensa em recusar o convite, mas fazem-no sentir-se envergonhado em pensar numa hipótese tal, e além disso “entreviu, não sem prazer, que o evento lhe permitiria desfilar mais uma vez em seu belo casaco novo e, desta vez, sob as luzes.”
“Lamentamos não poder dizer com precisão onde residia o funcionário que o convidara. A memória começa a nos trair. As ruas e os edifícios de Petersburgo confundem-se de tal forma em nossa cabeça que já não conseguimos mais nos orientar nesse vasto labirinto. De todo jeito, é certo que o referido subchefe residia num dos mais belos bairros e, conseqüentemente, muito distante de Akaki Akakiévitch. Este precisou seguir de início algumas ruas sombrias e quase desertas, iluminadas mui parcimoniosamente. Mas, à medida que se aproximava de seu destino [isto é, em direção à prosperidade], a movimentação se tornava mais viva e a iluminação mais brilhante.”
Na moradia do subchefe, comemoram bastante a sua chegada, ou melhor, a chegada do seu casaco, e depois ele fica se arrastando por ali, ignorado e insignificante como sempre, deslocado, “sem lugar no mundo” fora das suas cópias: “não demorou para que fosse deixado de lado… A balbúrdia, o falatório, o grande número de pessoas, todas essas coisas desconhecidas mergulharam o pobre homem numa espécie de idiotia” .
Ele se retira “à francesa”, meio alto devido a duas taças de champanhe “e logo se estenderam à sua frente ruas solitárias… Somente a neve cintilava sobre a calçada onde não havia alma viva e ao longo da qual os casebres cochilando por detrás de suas venezianas fechadas resultavam em sinistras manchas negras. Por fim, surgiu um vasto espaço vazio, menos semelhante a uma praça do que a um horrível deserto. Os edifícios que contornavam seus limites mal eram divisados e, perdida nessa imensidão, o lampião de uma guarita parecia estar ardendo distante, quase no fim do mundo”.
Três indivíduos o abordam e tomam seu casaco, depois de joelhadas em seus rins, fazendo com que ele role pela neve e perca a consciência. Procura a guarita e é tratado com desdém pelo guarda, que o manda falar com o Comissário no dia seguinte. Regressa à sua casa, após sua única aventura na vida, “num estado lastimável: os cabelos, quer dizer, os poucos tufos que ainda protegiam suas têmporas e sua nuca, desgrenhados, o peito, as ancas, as pernas inteiramente cobertas de neve.” Sua senhoria inicia a longa série de conselhos sobre qual autoridade procurar para obter o casaco de volta. Indo atrás da justiça, pela primeira vez Akaki Akakiévitch falta ao trabalho.
No dia subseqüente, “a história do roubo emudeceu quase todos os colegas, ainda que uns gaiatos descobrissem no incidente nova matéria para zombaria”. Um deles dá o conselho fatal: procurar um “certo personagem influente”, que iniciaria o processo infalível de restituição do valioso bem (Akaki Akakiévitch voltou, enquanto isso, ao seu velho e lamentável casaco, no fundo sua alma gêmea em termos de condição existencial). Só que o tal “personagem influente” é uma Excelência: “Ocorre que o título de Excelência dera uma reviravolta completa em sua cabeça. Desde que o obtivera, seu espírito desviou-se e ele perdeu todo controle de si mesmo. Com aqueles que tinham o mesmo nível que ele, ainda se conduzia com boa educação… mas se acaso se misturasse a seus interlocutores alguma pessoa inferior ao lugar que ele ocupava na hierarquia, nem que fosse um só grau, ele se tornava de imediato insuportável, esquecendo toda a cortesia…” [3]
O desafortunado Akaki Akakiévitch o procura num momento inadequado (ele está em colóquio, e exibindo-se, com um antigo camarada) e ele considera as reivindicações do amanuense de uma “familiaridade excessiva”: “Meu senhor, exclamou ele no tom mais cortante, onde acredita estar? Desconhece a tal ponto os procedimentos adequados? O senhor deveria antes de mais nada apresentar sua demanda ao encarregado de serviço. Este deveria encaminhá-la na boa e devida forma ao chefe da repartição, o chefe da repartição ao chefe da divisão, o chefe da divisão ao meu secretário, o qual afinal a submeteria à minha apreciação” (e Akaki Akakiévitch o procurou por não confiar na polícia), “Sabe com quem o senhor está falando? Compreende diante de quem está? Vamos lá, eu estou perguntando! Ele lançou esta última frase batendo o pé e com uma voz estridente que faria com que sujeitos muito mais autoconfiantes do que Akaki Akakiévitch também perdessem a compostura. Akaki Akakiévitch sentiu-se prestes a desfalecer: seu corpo inteiro tremia, suas pernas vacilavam…se os contínuos não o houvessem segurado pelos braços, ele teria infalivelmente caído no chão. Foi carregado quase inconsciente”. Nisso tudo, Sua Excelência fica encantado de mostrar ao amigo (este, constrangido) seu poder esmagador.
E é um literalmente esmagado (homem-inseto) Akaki Akakiévitch que vai para sua casa, com seu capote velho, vergastado pela neve, “pelo vento que soprava em sua direção de todos os lados ao mesmo tempo, como parece ser regra em Petersburgo [4]. Pegou num piscar de olhos uma bela e boa infecção da garganta… Tais são muitas vezes as conseqüências de uma séria descompostura! Graças à generosa colaboração do clima de Petersburgo, a doença evoluiu muito mais rapidamente do que se poderia esperar…” Ele é desenganado pelo médico. E morre em delírio, com a mente girando confusamente em torno do capote roubado: “O morto foi levado, colocado na sepultura e Petersburgo ficou sem Akaki Akakiévitch”. Como se isso tivesse a menor importância.
Mas Petersburgo não ficou muito tempo sem ele: “Quem poderia ter acreditado que levaria no além-túmulo uma existência movimentada, capaz de conhecer aventuras ruidosas, sem dúvida para compensar o pouco brilho de sua vida terrena?” E a “modesta narrativa” flerta então com o fantástico, de uma forma galhofeira. O espectro do amanuense surge em todas as partes tomando o capote dos transeuntes de qualquer classe, “sob pretexto de recuperar o seu, roubado”. A polícia (que não o ajudara) é colocada em seu encalço, após as queixas atingirem um volume insuportável: “Os guardas receberam ordem de agarrar o fantasma, morto ou vivo, e aplicar nele um severo corretivo que pudesse servir de exemplo aos demais”. O fantasma, entretanto, os assusta de tal forma que eles “passaram a evitar prender até mesmo os vivos”.
O pior está reservado à Sua Excelência, o autor da descompostura fatal. Após uma noitada, ao invés de ir para seu lar, ordena ao cocheiro que o leve à casa de uma “certa Karolina Ivánovna, senhora de origem alemã [5] , acho, pela qual ele cultivava sentimento inteiramente amigáveis”. No caminho, rajadas fustigantes interrompiam a “doce quietude” da noite petersburguense. Súbito, uma mão vigorosa o agarra pela gola e vê seu lado o fantasma, vestido com velho uniforme puído, que lhe diz: “É de teu casaco que preciso!” E assim Sua Excelência perde o casaco e a vontade de visitar Karolina Ivánovna, dando ordem ao cocheiro para levá-lo para casa, onde se arrasta até sua cama e passa uma noite agitada. E a partir daí ele se torna mais cuidadoso.
A partir dessa noite, também, não há mais aparições nos logradouros mais distintos. “A peliça de Sua Excelência cumprira sem dúvida seu destino.” Porém, nos bairros mais distantes, há rumores sobre um fantasma, um espectro arrogante que diz “Que queres?” ao interpelante e que apresentava uma estatura mais alta e bigodes enormes, diferente da figura anterior de Akaki Akakiévitch. É um Fantasma-Excelência? Efeito da peliça? Nós o vemos pela última vez na narrativa, desaparecendo “completamente em meio às trevas noturnas”.
É inegável que essa admirável narrativa teve grande efeito sobre Dostoiévski, que começará a escrever poucos anos depois. Em 1842, Herman Melville está nos mares do sul (em agosto, por exemplo, desembarca no Taiti). Só vai residir na Nova Iorque de Bartleby em 1847. Muitos anos depois, em 1866, e após muitas experiências ruins, esse escritor obscuro consegue, já a caminho dos 50 anos, um posto de inspetor da Alfândega (e aí se aposentará, 22 anos depois, ironizando a “dignidade do trabalho”, “pura mistificação”).
Seu grande amigo e o outro membro do fenomenal trio de ficcionistas norte-americanos pré-Henry James (além dele e de Poe), Nathaniel Hawthorne [6], ao publicar A letra escarlate (em 1850), incluíra uma polêmica introdução (em que o narrador explica de que forma os documentos da história chegaram às suas mãos), a qual era uma descrição do funcionamento da Alfândega de Salem, da qual fora conferente por três anos (e, anos mais tarde, inspetor no porto). Ele foi afastado em 1849 (ano da morte de Poe), por motivos políticos: “Em minha cidade natal de Salem, na extremidade da qual, meio século atrás, nos tempos do velho King Derby, se estendia um cais muito movimentado… ergue-se um espaçoso edifício de tijolos, de cujas janelas fronteiras se tem uma vista não muito encantadora… No ponto mais elevado do telhado, durante precisamente três horas e meia a cada manhã, flutua ou pende, consoante sopra o vento ou reina calmaria, a bandeira da República, com as treze listas em posição, não horizontal, mas vertical, a indicar que se encontra ali a sede de um posto civil, e não militar, do governo do Tio Sam” [7].
As primeiras páginas repisam a sensação de abandono e declínio de um lugar outrora próspero e central: “subindo a escadaria podia-se enxergar…uma fileira de figuras respeitáveis, sentadas em cadeiras de velho estilo, cujas pernas traseiras se encostavam à parede. Passavam a maior parte do tempo dormindo, mas uma vez ou outra era possível escutá-los falando entre si, com uma voz intermédia entre a fala e o ronco, e com aquela falta de energia característica dos que residem em asilos de velhos, abrigos de mendigos, e de todos os seres humanos que, no concernente à subsistência, dependem da caridade, do trabalho servil ou de qualquer outro expediente que não seja a independência do esforço pessoal. Esses idosos cavalheiros (sentados, como Mateus, junto ao balcão aduaneiro, mas não muito dispostos a serem convidados a sair dali, como ele, para se dedicarem a peregrinações apostólicas) eram os oficiais alfandegários.”
Temos uma sala “forrada” com teias de aranha e pinturas antigas, apresentando um desleixo visível em toda a parte. Nem sinal do sexo feminino e seus “instrumentos mágicos”: vassoura e esfregão. Aí então, o narrador menciona um indivíduo que recebia as pessoas com extremos de amabilidade. Esse indivíduo, o inspetor “locofoco” [8], foi varrido dali por uma vassoura nada ausente, a da reforma administrativa motivada pelo revezamento de partidos no poder.
O ex-inspetor fala das velhas raízes que o prendem a Salem, cidade cuja irregularidade topográfica não é “nem pitoresca nem fantasiosa, mas tão somente insípida, com sua longa e preguiçosa rua principal que se estira fastidiosamente ao longo da extensa península… sendo estas as feições de minha cidade natal, seria de todo razoável experimentar um apego sentimental a um desorganizado tabuleiro de xadrez?”
Como há muitos antepassados seus inscritos na história da cidade, ele faz uma formulação belíssima (como gênio que é): “Em parte, pois, o apego de que falo não passa de mera simpatia que o pó sente pelo pó”. E revela que, assim como o porto de Salem, também é um produto decaído de uma velha e ilustre cepa: “Sem dúvida, alguns desses austeros e carrancudos puritanos devem ter pensado que seria mais que suficiente castigo de seus pecados que, com o rodar dos anos, o velho tronco da árvore familiar, coberto de respeitável camada de musgo, houvesse de produzir, na extremidade do seu ramo mais elevado, um vagabundo como eu. Nenhuma das aspirações,que eu tenha acariciado, eles a teriam reconhecidas como digna de louvor…” Portanto, um “rebento degenerado”, mas ainda apegado ao velho solo (não que ele reconheça tal coisa como saudável): “Foi principalmente esse estranho, indolente e enfadonho apego ao meu torrão natal que me levou a ocupar um lugar no edifício de tijolos do Tio Sam quando, afinal, eu podia, e talvez com vantagem, ter partido para outro cantão. Mas a força do destino pesava sobre mim…. como se Salem fosse, para mim, o centro do universo para onde me jogava a força da gravidade. Assim, certa manhã subi o lance de degraus de granito, levando no bolso o documento de minha nomeação assinado pelo Presidente da República, e fui apresentado à turma de cavalheiros que deviam ajudar-me a suportar o peso da responsabilidade, como diretor dos serviços executivos da Alfândega. Tenho minhas dúvidas (ou, antes, não duvido absolutamente de coisa alguma) se algum funcionário público dos Estados Unidos, civil ou militar, teve jamais uma corporação patriarcal de veteranos às suas ordens como eu… Embora de forma alguma fossem menos expostos do que seus semelhantes aos efeitos dos anos e às enfermidades, era óbvio que algum talismã ou coisa similar mantinha a morte à distância. Dois ou três entre eles, conforme me informaram, que sofriam de gota e reumatismo, e quiçá estavam cravados ao leito, nem sequer sonhavam em fazer ato de presença na Alfândega durante boa parte do ano; contudo, quando abrandavam os rigores do inverno, saíam a aquecer-se ao calor do sol de maio ou junho, depois dirigiam-se preguiçosamente àquilo que pomposamente denominavam o seu dever, para logo em seguida irem-se meter novamente na cama. Devo confessar-me réu de reduzir a respiração oficial de mais do que um desses veneráveis servidores da República. Por efeito da minha atuação, foi-lhes outorgado repousarem de seus árduos trabalhos, e logo a seguir alguns deles se retiraram para um mundo melhor, como se o único princípio de vida que os animava tivesse sido o zelo ao serviço de sua pátria.” Vejam a malícia terrível com que Hawthorne delineia esse pesadelo burocrático, arrematando com um: “e eu acredito plenamente que assim fosse”; um pouco mais adiante: “Nem a entrada principal nem a das traseiras do edifício da Alfândega dão para a estrada que conduz ao Paraíso”.
Imaginem o efeito desse texto na Salem de 1850, mesmo que ele tivesse sido levado na conta de vingança de ex-funcionário ressentido… e ainda por cima escritor, autor de uma histórias estranhas, até com um livro em que elas eram contadas duas vezes, vejam se é possível!
Embora, ele tivesse surgido como Anjo Exterminador, principalmente para os afastados pela gota e reumatismo, não teve coragem suficiente para aposentar os que permaneciam na, digamos, ativa: “Sabiam eles, esses excelentes camaradas consumidos pelos anos, que, em virtude da lei estabelecida, tinham de ceder o lugar a outros mais novos… Eu também o sabia, todavia não havia maneira de em meu coração me resolver a agir em conformidade com a lei. Pelo que, muito merecidamente para meu descrédito e não menos consideravelmente para desassossego da minha consciência oficial, todos eles, durante o tempo da minha comissão, continuaram a arrastar-se tranqüilamente pelo cais e a subir e descer com toda a pachorra os degraus da escadaria da Alfândega. Boa parte do tempo consumiam-na também cochilando pelos cantos habituais, refestelados em suas cadeiras. Nem sempre. Despertavam uma ou duas vezes em cada expediente para se enfastiarem mutuamente com a repetição de velhas histórias do mar, contadas e recontadas centenas de vezes, e com as picantes, mas bolorentas anedotas que tinham acabado por se converter em senha e contra-senha entre eles…”
Apesar de alertar de que nem todos eram tão velhos (“espécimes de senilidade”) ou faltos de vigor, para não parecer estar cometendo uma grave injustiça com aqueles excelentes e velhos amigos, ele insiste: “…no que se refere à maioria do meu corpo de veteranos, não falto à verdade, se os caracterizar de modo geral como uma turma de velhas almas fatigadas que de suas múltiplas e variadas experiências da vida nada recolheram digno de preservação. Dir-se-ia terem jogado para longe os grãos dourados da sabedoria prática, que eles tiveram tantas oportunidades de ceifar, e que se empenharam com sumo cuidado em armazenar na memória apenas as vagens.”
Então começam alguns retratos individualizados. Para não ficar muito longo, e só para atiçar o gosto de ler A letra escarlate (e é apenas a introdução, nem chegamos ainda à história de Hester Prynne), vou me limitar a pinceladas do retrato do patriarca-mor dos oficiais aduaneiros, com “a descuidada segurança de sua vida dentro da Alfândega, apoiada em rendimentos de vulto, perturbada apenas por leves e infreqüentes apreensões de ser afastado”; mais adiante: “poder de raciocínio era coisa que ele desconhecia… não era mais do que um aglomerado de instintos vulgares, que, servidos por uma prazenteira disposição de ânimo em absoluta consonância com seu bem-estar físico, cumpria regularmente sua obrigação, e a contento de todos”. O narrador confessa seu fascínio por esse “fenômeno raro”: a nulidade absoluta.
Estamos chegando ao término da parte da introdução que nos interessa aqui, que é a do homem colocado como peça de uma engrenagem burocrática, não um homem insignificante como Akaki Akakiévitch[9], mas o que na literatura russa será chamado de homem supérfluo (e que aparece tanto em Turgueniév quanto em Dostoiévski), que seria, na definição de Maria Aparecida Botelho Pereira Soares, o intelectual cujo talento e inteligência não têm aplicação prática num determinado tipo de sociedade e, por falta de uma realização pessoal, acaba amargo e destrutivo: “Concorre grandemente para a euforia moral e intelectual de um homem entrar em camaradagem com indivíduos que lhe sejam dessemelhantes e alheios aos assuntos de que se ocupa, para apreciar os talentos e atividades dos quais necessita sair de si próprio. As vicissitudes de minha vida muitas vezes me proporcionaram semelhante vantagem, nunca porém com a amplitude e variedade da minha permanência na Alfândega.”
Em suma, o que é a Alfândega, qual a “mola real” que mantém em funcionamento a engrenagem:“numa instituição como essa…os funcionários são designados para atenderem a seus próprios proventos e conveniências, não se atendendo geralmente à competência ou incompetência para o desempenho das obrigações que lhe são confiadas”.
Quanto ao narrador, “Dentro de mim havia um dom, uma faculdade, em estado de inibição ou entorpecimento, se é que já não se esvaecera de todo. Em tudo isso haveria algo de triste ou sobremaneira melancólico, se eu não tivesse consciência de que em minhas mãos estava o evocar do que no passado houvera de valioso. É possível, de fato, que essa vida não pudesse impunemente prolongar-se por muito tempo… encarei-a sempre como fase transitória… Entrementes, aí estava eu, inspetor de impostos e rendas, e tanto quanto me é dado compreender, tão bom inspetor quanto era necessário… Os meus colegas de repartição… olhavam-me através desse prisma, nem provavelmente viram em mim outra personalidade…. É uma boa lição, embora por vezes dura, para um homem que sonhou com a fama literária e ambicionou conquistar por este meio um lugar de destaque entre as eminências mundiais, manter-se à margem do estreito círculo em que suas pretensões são conhecidas, e verificar como, fora dele, ninguém liga importância ao que ele faz e pretende…. É certo que em matéria de conversa literária, o oficial de marinha discutia, vez por outra, sobre alguns dos seus autores favoritos: Napoleão ou Shakespeare [eu também sou apaixonado pelas obras completas de Napoleão]… O apontador da Alfândega imprimia meu nome com tinta preta nos sacos de pimenta, nos fardos de cereais, nas caixas de charutos, e nas embalagens de toda sorte de mercadoria sujeita a direitos aduaneiros, em testemunho de que tais artigos haviam pagado o imposto e passado legalmente pela alfândega. Transportada neste original veículo de fama, a notícia de minha existência, na medida em que um nome a pode transportar, chegava aonde nunca antes tinha chegado e aonde, segundo espero, não voltará a chegar.”[10]
[1] Cf. São Petersburgo, uma história cultural, de Solomon Volkov (Record)
[2] Utilizarei a tradução de Roberto Gomes (L&PM), a única que tenho à mão no momento.
[3] Estamos num universo que será explorado aqui no Brasil por Lima Barreto.
[4] Esse papel onipresente da neve, associado à condição dos “humilhados e ofendidos” é muito presente também nos textos de Dostoiévski que veremos, O Duplo e Notas do Subterrâneo; neste último, na segunda parte, não por acaso intitulada “A propósito da neve derretida”, lemos: “A neve úmida caía em flocos… Nas ruas desertas lampejavam lugubremente os lampiões através da bruma nevada, semelhantes a tochas de enterro. A neve penetrou dentro do meu capote, do meu paletó, da minha gravata, derretendo; não me cobri: tudo estava perdido mesmo!” Em Dostoiévski, a neve também se associa aos estados febris, à beira do delírio, dos seus protagonistas e/ou narradores.
[5] Nós vamos reencontrá-la quando falarmos de O Duplo, de Dostoiévski.
[6] Ele nasceu em quatro de julho de 1804 e morreu em 1864, ano da publicação de Notas do subterrâneo, deixando muito solitário seu amigo e autor de Moby Dick.Ambos se sentiam incompreendidos e isolados, todavia Hawthorne foi mais bem sucedido em sua carreira de escritor.
[7] Eu tenho três traduções: a de Sodré Viana (uma edição bem antiga da José Olympio), a de A.Pinto de Carvalho (que li na “Coleção Saraiva”, mas foi reeditada pela Ediouro); e uma mais recente, de Elaine Farhat Sírio (Círculo do Livro); a Martin Claret editou recentemente essa grande obra-prima.
[8] Alusão à ala radical do Partido Democrata na época.
[9] Mesmo porque ele ocupa um cargo hierárquico superior. O que os aproxima é a sensação de “enterrado vivo” num lugar onde não há a “vida viva”, como diz o narrador de Notas do Subterrâneo, uma sensação que foi extremamente bem descrita por Lima Barreto ao mostrar o ressentimento dos colegas de repartição de Policarpo Quaresma quando este se torna notório (ridiculamente notório, coitado) ao propor seu requerimento de adotar o tupi-guarani como língua oficial da nação: “É como se se visse no portador da superioridade da superioridade um traidor à mediocridade, ao anonimato papeleiro. Não há só uma questão de promoção, de interesse pecuniário; há uma questão de amor-próprio, de sentimentos feridos, vendo aquele galé como eles, sujeito aos regulamentos, aos caprichos dos chefes, às olhadelas superiores dos ministros, com mais títulos à consideração, com algum direito a infringir as regras e aos preceitos.” É evidente que Lima aqui projeta sua própria situação nos anos em que trabalhou como amanuense no Ministério da Guerra.
[10] E a seguir ele conta como encontrou a papelada referente à história de Hester Prynne.
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