(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 31 de agosto de 2004, e aqui ligeiramente modificada, com acréscimos de notas de rodapé)
Dois acontecimentos destes últimos dias dizem respeito ao já clássico O caçador de andróides (Do androids dream of eletric sheep?, 1968, traduzido por Ruy Jungman para a Francisco Alves[1]): uma enquete entre cientistas elegeu como melhor filme de ficção científica Blade runner[2] (um exagero, quando se pensa em 2001 e Solaris), versão consideravelmente modificada da história criada por Philip K. Dick [1928-1982] (até o título é tirado de outro livro); além disso, roubaram a tela O grito, de Munch, que funciona como elemento-chave na trama.
É difícil, para quem viu o filme, esquecer da cena na qual, após encontrá-la numa espelunca de strip-tease, o caçador executa uma replicante em meio a uma sucessão de vitrines quebradas. Pois bem, no romance, a andróide em questão é uma cantora de ópera, Luba Luft, “aposentada” (é o termo utilizado) num museu quando admirava uma exposição de Munch. Dois quadros ganham destaque em cena: o já referido O grito e Puberdade. E a morte da cantora-andróide como que representa a agonia do primeiro quadro (“A criatura, homem ou mulher, o que quer que fosse, estava contida em seu próprio uivo… separada, ou a despeito, da explosão do seu grito”), levando Deckard a questionar seu trabalho, enquanto uma cena de sexo (entre o caçador e Rachel, a mais ambígua dos andróides) terá o clima do segundo.
Ópera, museu. A alta cultura em agonia e seus restos (num texto em que a palavra “entulho” é reiterada). Um mundo pós-guerra, coberto pela poeira, em que só seres humanos geneticamente imperfeitos continuam, em que quase não há animais, substituídos por contrafações “elétricas” (a certa altura, um gato morre e o solitário Isidore, que abriga alguns andróides, pensando tratar-se de um substituto artificial, leva-o para seu chefe, a fim de consertá-lo, e então descobre que era um gato de verdade: “Eu pensei que fosse um trabalho realmente bem feito. Tão bem feito que me enganou”). Estamos no coração do universo de Philip K. Dick, a confusão entre real e simulacro.[3]
Nesse livro, que tem muito do clima de Farenheit 451, de Ray Bradbury, o problema dominante para o grupo de andróides caçados não é o da finitude[4], como no filme (o que os levava a um confronto esclarecedor com seu criador, e fazia o espectador identificar-se com eles), e mais o da identidade e da empatia. Num mundo abandonado, empoeirado[5] e entrópico, é possível a empatia ou só sobrou a frieza alucinante (sem a capacidade do sentimento de conexão com o Outro e, portanto, sem a menor possibilidade de compaixão) de seres continuamente aperfeiçoados pela tecnologia?
Enquanto isso, a impostura geral alavanca a auto-ilusão. Deckard se depara com um sapo[6], que julga autêntico. Em casa, descobre seu logro. Mesmo com esse final desolador, há uma passagem maravilhosa anti-O grito, por causa desse lampejo da vida real: “seus olhos brilharam como os de um menino. Ele parece, pensou sua esposa, como se tivesse estado brincando e chegou o momento de voltar para casa. Descansar, tomar um banho e contar tudo sobre os milagres do dia”.


[1] Nota de 2011- Há uma tradução mais recente, lançada pela Rocco em 2008, e realizada por Ryta Vinagre.
[2] Dirigida em 1982 por Ridley Scott, possivelmente seu último grande filme, depois foi apenas uma carreira de artesão às vezes digna (Thelma e Louise; Perigo na noite, 1492), muitas vezes indigna (Hannibal, Falcão negro em perigo), sem falar no requentado Gladiador, que só não é um desperdício por causa do talento de Russell Crowe.
Mas não há dúvida de que Blade runner já se incorporou ao imaginário contemporâneo de forma definitiva.
[3] Numa outra resenha, de 15 de março de 2008 (a respeito dos 40 anos do livro e seu relançamento pela Rocco), escrevi que Dick é “o supremo autor dos simulacros, das vidas virtuais que se transformam em pesadelos” e também que o argumento do texto original “é o mesmo da requintada produção de Ridley Scott: andróides absolutamente idênticos a seres humanos encontram-se foragidos e são perseguidos por um especialista, Deckard. Só que o original é bem mais sombrio.”
[4] Os replicantes só viviam pouquíssimos anos, apesar de seus poderes, talento e personalidade.
[5] Não há nem aquela chuva que se fazia onipresente no filme.
[6] Numa cena alucinatória, que só podia ter sido escrita por alguém que mergulhou fundo no ambiente lisérgico dos anos 60.
Gostei da sua resenha. Copiei e colei ela em meu blog, citando sua autoria e o link. Se você se sentir ofendido, basta deixar um comentário lá que eu deleto o post, ok? Parabéns pelo ótimo blog, indiquei nos meus favoritos!
Comentário por Tiago Masutti — 23/01/2012 @ 21:22 |
Que nada, Tiago, me sinto honrado. Muito obrigado. Abração.
Comentário por alfredomonte — 24/01/2012 @ 18:42 |