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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 15 de julho de 1997)
Cético e mordaz como era, com relação à cultura contemporânea, Vladimir Nabokov (1899-1977) certamente teria se deliciado com os primários erros de informação do artigo sobre seu romance PNIN (em tradução de Jorio Dauster), assinado por Antônio Querino Neto e publicado pela Isto É da semana passada. Para começar, ele informa que o livro foi publicado em 1953, o que tornaria Pnin um livro futurista, já que contém fatos de anos posteriores. Na verdade, foi publicado em 1957, entre duas obras-primas mais famosas, Lolita (1955) e Fogo Pálido (1962)—neste último, inclusive, aparece um certo professor Pnin. Depois, o cuidadoso articulista informa que só agora o livro chega ao leitor brasileiro através da Companhia das Letras. Então, seria uma alucinação minha (oh! Santo Daime) o exemplar que julgava ter de Pnin traduzido por Pinheiro de Lemos para a Record e que li na minha adolescência, no começo dos anos 80? Uma alucinação tanto mais grave porque extraí duas terríveis certezas da leitura desse exemplar lisérgico, que a vida só fez confirmar, de lá para cá: a primeira, de que a erudição que se encastela num nicho de conhecimento especializado e que tem medo das experiências, das pessoas e dos acontecimentos, não serve para nada; e a segunda, de que por mais que se tente, as diferenças de nacionalidade e cultura acabam por ser um abismo intransponível para a compreensão entre as pessoas, e só a crescente uniformização global é que dá uma ilusão de que os países do mundo podem “entender-se” de fato (uniformidade e nivelamento por baixo não significa concórdia e compreensão).
O personagem-título é, como vários outros, um emigrado da Europa, fugindo ou do mundo stalinista ou do nazismo, ou dos dois, e que incorporou-se como professor de uma universidade provinciana nos EUA dos anos 40 e 50. E, como vários outros emigrados eruditos, não tem o menor respeito pela educação ou cultura norte-americanas. Mas o professor Timofey Pnin talvez seja o mais inadaptado dos emigrados, e o mais ridicularizado.
O livro nos oferece um retrato completo de sua personalidade, desde a sua espantosa erudição, sua ligação obsessiva com a infância na Rússia pré-soviética (os personagens de Nabokov, como o Bentinho de Dom Casmurro estão sempre tentando “atar as duas pontas da vida”), seus acessos de angústia, até os seus aspectos mais ridículos e grotescos, sua infantilidade, sua incapacidade de lidar com as pessoas, sua necessidade de ordenar o mundo à sua imagem, ou como o diz o narrador (amigo ou inimigo de Pnin? Como saber?), pninizar a realidade.
A incrível capacidade de Pnin, com toda a sua meticulosa bagagem intelectual, de se deixar enredar pelas situações mais aviltantes, antecipa as agruras dos intelectuais dos livros do grande Saul Bellow, como Herzog (1964) e O legado de Humboldt (1975). E todos os cuidados maníacos do professor russo para assegurar sua tranqüilidade e seu encastelamento encontram eco recente nos personagens irritantemente cautelosos de Anne Tyler, por exemplo, o protagonista de O turista acidental (1985).
Além da figura do professor Pnin, Nabokov banha na soda cáustica da sua mordacidade, o mundo universitário, com seus oportunistas que se aproveitam das confortáveis carreiras acadêmicas: o chefe do Departamento de Francês, Blorenge, por exemplo, não sabe francês, e o reitor da Universidade, num discurso, fala da contribuição de homens importantes da Rússia, como Raskolnikóv (que não é outro senão o assassino de Crime e Castigo de Dostoiévski); com suas onerosas pesquisas inúteis, com seus estudantes deslumbrados com palavras da moda; ou então, com seus pilares eruditos em querelas enfadonhas e minúcias inúteis (ficar horas discutindo qual o dia exato em que começa a trama de Anna Karênina de Tolstói, por exemplo).
A mordacidade do autor de Somos todos arlequins vem sempre imersa num banho de estilo. Hoje em dia só a canadense Margaret Atwood obtenha a mesma conjunção graça-ironia, veneno retórico-desdobramento maníaco dos personagens, em livros como Madame Oráculo & Olho de gato.
Para se ter uma idéia do estilo em que Pnin é escrito, basta citar um trecho cruel como o momento em que o professor Pnin é obrigado a arrancar todos os seus dentes apodrecidos: “Surpreendeu-o verificar o quanto era afeiçoado a seus dentes. A língua, aquela foca gorda e lustrosa, costumava deixar-se cair com um baque e deslizar alegre entre os rochedos familiares, conferindo os contornos de um reino ameaçado mas ainda seguro, mergulhando da grota na angra, encontrando um pedaço de alga doce na mesma fenda de sempre; mas agora não restava nenhuma das antigas marcas do terreno, tudo o que existia era apenas uma grande fenda sombria, numa terra incógnita de gengivas…”
Ou, no outro extremo, o momento em que Pnin relembra uma antiga e doce paixão, morta em um campo de concentração (o que mostra o descompasso entre o comportamento folclórico e a vida interior do professor russo): “Pnin se ensinara durante os últimos dez anos a jamais lembrar-se de Mira, não porque, em si própria, a recordação de um caso de amor juvenil, banal e fugaz, ameaçasse sua paz, mas porque, se alguém quisesse realmente ser sincero consigo próprio, não podia esperar que a consciência—e, portanto, a autoconsciência—subsistisse num mundo onde coisas tais como a morte de Mira eram possíveis. Cumpria esquecer, porque não se podia viver com o pensamento de que aquela jovem mulher graciosa, frágil e terna, com aqueles olhos, aquele sorriso, tendo ao fundo aqueles jardins e campos nevados, houvesse sido levada num vagão de transporte de gado para um campo de concentração… E, como não havia registro da forma exata como fora morta, Mira continuava a morrer muitas mortes na mente dele, ressuscitando a cada vez para morrer de novo, e de novo, levada por uma enfermeira para que lhe inoculassem algo sujo, bacilos de tétano, vidro moído, para ser asfixiada com ácido prússico onde imaginava que ia tomar um banho de chuveiro, para ser queimada viva numa fossa…”
Talvez só o James Ivory de Vestígios do dia poderia traduzir cinematograficamente essa história melancólica e grotesca de alguém que pertence a um tempo destruído e morto historicamente, e que continua numa sobrevida onde tudo parece desperdício e vazio, onde tudo assume o ar paródico e sinistramente farsesco.
Só falaria, talvez, o peculiar humor nabokoviano. Só ele, aliás, permitiria ao genial autor russo compreender os medonhos projetos de capa que a Companhia das Letras insiste em colocar nas edições que vem lançando das suas obras. Com tais capas, fica parecendo que são obras de um tantã.
Porém, num mundo onde se mata gente das formas como provavelmente mataram a namorada de Pnin, qual a importãncia disso? Talvez a mesma que tenha a data exata em que começa a trama de Anna Karênina.
Alfredo,
Muito bom dia!
Você ainda possui esse exemplar de “Pnin” da Companhia das Letras? Estaria interessado em vendê-lo? Sou um assíduo colecionador de Nabokov, e este é o único título faltante na minha coleção da Companhia das Letras.
Um abraço!
Comentário por Jonathan Tavares — 13/02/2016 @ 10:41 |
Não tenho interesse em vender, abraço.
Comentário por alfredomonte — 13/02/2016 @ 14:59 |