(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 27 de outubro de 1998)
Por que será que O deus das pequenas coisas (The god of small things, 1997, traduzido por José Rubens Siqueira) caiu no gosto popular? Qual é o mistério que levou o leitor brasileiro a se interessar pelas tragédias de uma família da Índia, colocando o livro na lista dos mais vendidos? Foi essa curiosidade que me levou a enfrentar a mistura de poesia com telenovela de Arundhati Roy, autora indiana de expressão inglesa na linha de Salman Rushdie, Ruth Prawer Jhabvala e Anita Desai.
O deus das pequenas coisas tem como fio condutor a volta de Rahel à pequena Ayemenen, onde reencontra seu gêmeo, Estha, que sofre de um estranho mutismo. O miolo da história, porém, são os episódios ocorridos na década de 60, quando eram crianças. A mãe deles, Ammu, é uma pária na família porque ousou divorciar-se do marido. Mesmo assim, vive agregada com os filhos e será responsável pela transgressão trágica do enredo, pois envolve-se sexualmente com Velutha, um “paravan”, isto é, um intocável, a escala mais baixa e desprezível dentro de sistemas de castas milenar da Índia. O escândalo do envolvimento entre Ammu e Velutha explode ao mesmo tempo que os gêmeos desaparecem e a prime deles, Sophie, morre afogada. E Velutha leva a culpa de tudo, sendo assassinado pela polícia (para complicar, ele é um militante comunista).
A maneira como Arundathi Roy nos conta essa história é hábil: as coisas vão surgindo fragmentariamente, e sempre sob um determinado ponto-de-vista. O livro também retrata o caldeirão político no qual a Índia estava mergulhada e que atinge até as “pequenas coisas”. Por que então O deus das pequenas coisas não se tornou um GRANDE romance (embora seja BOM)?
Em primeiro lugar, pela própria organização da narrativa. Para convencer, era preciso que ela desse peso e substância aos fatos da vida adulta dos gêmeos, quando eles se reencontram. Isso não acontece e frustra o leitor. Rahel e Estha ficam arrastando-se num clima de melancolia e perda e acabam dando saudades dos personagens autistas de Marguerite Duras. De fato, a falta de estofo atrapalha muito O deus das pequenas coisas. Nem os gêmeos nem Ammu nem Velutha conseguem decolar como personagens, e não fosse o estilo poético e ousado da autora anglo-indiana, realmente poderiam fazer parte de uma história telenovelesca comum: a mulher de classe social elevada que tem um amor proibido, inviável socialmente.
Os melhores personagens são os secundários (como a venenosa Baby Kochamma e o intrigante “camarada” Pillai). As melhores cenas são as que preparam o drama principal. E a melhor de todas é a iniciação sexual de Estha, numa sessão de A noviça rebelde, por um vendedor de balas que faz com que o menino o masturbe. É o ponto alto do livro.
Por outro lado, o estilo poético adotado por Arundhati Roy, que frisa certas frases e imagens como “refrões”, peca pelo excesso. Assim como na poesia de Pablo Nerunda o excesso de metáforas e imagens foi se transformando num fenômeno banal, O deus das pequenas coisas parece ter sofrido o mesmo efeito entrópico: há excesso de carga, o discurso mistura imagens de mau gosto com imagens fortes, umas atropelando as outras. As “pequenas coisas” que deveriam emergir da narrativa ficam afogadas pela luxúria “poética” de Arundhati Roy, e o livro vez por outra despenca da corda bamba onde a subliteratura espera, ansiosa, lá embaixo.
Há um romance belíssimo de Joan Didion chamado Democracia (1984), no qual há um processo similar de fragmentar a narrativa, contornando o drama central, e também de utilizar um estilo de frases e imagens que voltam sempre, como “refrão”. Só que Democracia é sintético, elíptico, as personagens conservam seu mistério e ao mesmo tempo a narrativa revela muito. Portanto, o livro funciona muito mais do que o de Arundhati Roy. Mas como Joan Didion é uma mera norte-americana, e não egressa de uma civilização “exótica”, seu livro não fez o menor sucesso.
O que pode explicar o dispensável último capítulo de O deus das pequenas coisas, onde a autora resolve contar o que não podia ser contado, o que deveria irradiar-se na narrativa como seu segredo central, seu coração? O último capítulo é o golpe de misericórdia de enfraquecimento do romance, que estava sendo preparado por mil e uma banalidades espalhadas ao longo dos outros capítulos.
Ainda assim, o livro envolve e é muito agradável de ler. O mistério é saber por que o leitor brasileiro foi buscar o “deus das pequenas coisas” numa história tão longínqua, quando a perícia poética de uma Clarice Lispector, de uma Adélia Prado, ou de um Autran Dourado, aqui mesmo no Brasil, revelam essas “pequenas coisas” que escapam à História, de uma forma tão mais poderosa. Na própria Índia, as histórias de famílias que mergulham na tragédia e dissolução, escritas por Salman Rushdie (penso, por exemplo, em Os filhos da meia-noite e O último suspiro do mouro), são tão melhores que ele é um dos maiores ficcionistas dos últimos anos.
Agora: quem teve a infeliz idéia de colocar nesse livro uma capa que poderia perfeitamente adornar um livro espírita?
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