(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 11 de fevereiro de 2003)
Existirá na arte figurativa algo mais belo do que a obra de Rembrandt Harmenszoon van Rijn (1606-1669)?
Jean Genet (1910-1986) se propôs a elucidar o “segredo” do grande pintor holandês no primeiro dos dois textos (complementando-o na segunda parte do outro) que compõem REMBRANDT (França-1968 e 1979, traduzido por Ferreira Gullar). Genet toma como ponto de partida a obsessão rembrandtiana com auto-retratos (“nos quais podemos ler a evolução de seu método e a ação desta evolução sobre o homem”); e sendo ele mesmo um artista obsessivo acaba por nos revelar, no segundo texto, por que esse “segredo” era capital para si.
Num trem, espreitando um passageiro, tem a revelação de que “ qualquer homem vale qualquer outro”. Vale lembrar que Sartre, que foi amigo e admirador de Genet, termina sua belíssima autobiografia, As palavras (1964), com uma formulação similar: ao perguntar o que resta de seu projeto original de vida, que era o ato de escrever: “Todo um homem, feito de todos os homens, que os vale todos e quem vale não importa quem”.
A descoberta de Genet é perturbadora porque o passageiro é uma figura desagradável: “ignorando os acidentes—aqui repugnantes—de sua aparência, esse homem ocultava e logo me deixava conhecer o que o tornava idêntico a mim”.
Essa revelação, que rende algumas das melhores páginas de REMBRANDT, faz com que Genet se aperceba melhor do mistério do pintor: pulsando sob o decorativo, o gosto pelo fausto, pelo solene, pelo pomposo até, está a condição humana em suas contingências mais desesperadas ou descaradas: o envelhecimento, os atos corporais. Nada é hierarquizado, não existe o belo e o feio, tudo tem seu lugar no mundo, iluminado pelo olhar e pela mão do maior dos artistas, na minha opinião de leigo: “Os peitos respiram. As mãos estão quentes. Ossudas, nodosas, mas quentes. A mesa do Syndic des drapiers está apoiada sobre a palha, os cinco homens sentem o mijo e a bosta. Sob as saias de Hendrickje [musa do pintor], sob os casacos guarnecidos de peles, sob as sobrecasacas, sob o extravagante roupão do artista, os corpos cumprem bem suas funções: digerem, estão quentes, pesados, respiram, evacuam…” O notável é que isso foi conseguido em meio a um convencionalismo sufocante, em que até as cenas tiradas da Bíblia parecem burguesas, com o selo e a aprovação de uma sociedade despudoramente mercantil (embora severa em sua vida privada).
É uma lástima que um projeto editorial tão interessante[1], com um texto tão instigante, peque num ponto capital em se tratando de pintura: como são ruins as reproduções dos quadros de Rembrandt discutidos no texto! O leitor sempre pode recorrer a algumas edições acessíveis e razoáveis, como a de Michael Bockemühl para a Taschen, a qual, apesar de alguns descuidos infelizes (como a divisão, em duas páginas, estragando o efeito visual de dois dos maiores quadros de Rembrandt, A lição de anatomia & A ronda da noite), é preferível ao desfile 3×4 das trinta obras tematizadas em REMBRANDT, que, tirando esse poderoso “porém”, ainda assim é um dos melhores lançamentos dos últimos tempos.
Deixe um comentário