(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 26 de novembro de 2002)
Certamente um dos melhores projetos editoriais[1] deste ano é o da José Olympio para a tradução (realizada por Jean Marcel Carvalho) de Viagem ao Rio- Cartas de juventude (1848-1849), de Edouard Manet (1832-1883), o qual—como se sabe—teve uma tela recusada num Salão de Exposição oficial, em 1862, e acabou participando de um “Salão dos Recusados”, cuja repercussão tornou-o um divisor de águas na pintura francesa.
Além das cartas, a edição nos apresenta esboços feitos por Manet no navio-escola “Havre et Guadaloupe” (que o trouxe ao Rio) e é ilustrada por reproduções de quadros e litografias de artistas nacionais e estrangeiros que retrataram aspectos da capital brasileira na época.
Manet estava com 17 anos, portanto, ainda bem longe das peripécias em torno dos salões de exposição—oficiais e alternativos—parasienses. Pretendia ingressar na Escola Naval, por isso seu “estágio” no navio-escola. Chegou ao Rio em fevereiro de 1849 e lá ficou por dois meses, testemunhando—entre outras coisas—o carnaval, claro.
Sua visão do nosso país é turística e convencional, no que tem de favorável e desfavorável: acha tudo “terrivelmente caro”, o palácio do Imperador parece um “verdadeiro casebre”, nossa milícia “chega a ser cômica”; todos os portugueses da cidade atendem pelo nome de Pinto, os brasileiros “são preguiçosos e parecem não ter muita energia”. Além de lentos, moles, somos uma gente “pouco hospitaleira”. Quanto às nossas mulheres, “ninguém pode ser mais recatado e tolo do que uma brasileira”. A população é muito feia, menos as mulatas que “a bem da verdade são quase todas bonitas”. Todavia, é a natureza que impressiona, “nunca vi uma natureza tão bela”. Já a cidade em si, surpreendentemente, também é considerada feia, embora tenha para um artista “um caráter particular” (qual, ele não explica). Ao cabo de sua estadia, desabafa: “estou mais enfastiado no Rio de Janeiro do que estava no mar”.
Mesmo quem só viu de leve a história da literatura brasileira na escola deve lembrar que nossas primeiras manifestações textuais foram exercícios da chamada literatura informativo-descritiva sob a perspectiva do olhar estrangeiro. Até por causa da época em que as escreveu, e apesar do seu caráter mais íntimo e nada objetivo, as cartas de Manet se inscrevem dentro dessa tradição persistente, muito bem sintetizada pelo início da música O estrangeiro, de Caetano Veloso:”O pintor Paul Gauguin amou a luz da baía da Guanabara/ O compositor Cole Porter adorou as luzes da noite dela…/…O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a baía da Guanabara/ pareceu-lhe uma boca banguela…”
Ainda assim, o aspecto mais interessante de Viagem ao Rio é mesmo biográfico: a vida posterior de Manet oferece, em retrospecto, uma camada de ironia às cartas desse rapazote inteligente, burguês até a medula, enfim, “bom moço”, preocupado em fazer tudo certinho e em agradar a família (nas suas cartas nem ecoa o levante popular de 1848, que também foi um divisor de águas a seu modo). Quando se sabe que, até sua morte em 1883, Manet se desviará da arte oficial e amargará um caminho difícil, comprometido com a quebra de padrões acadêmicos da arte francesa, não deixa de ser engraçado encontrar um perfil tão careta e comme il faut.
Por outro lado, lemos que ele não se sente “nada encantado”com sua estada “nesse porto”: “Fui atormentado, brutalizado e, mais de uma vez, já pensei em dar uma guinada…” Passagens que, raras e marginais, revelam as entrelinhas, permitem ver que algo mais se passava com Edouard Manet do que o tom predominantemente plácido das missivas sugere. A impressão é de que ele fazia todo o possível para não inquietar a família e driblava a revelação de qualquer angústia ou experiência mais decisiva através de uma narrativa hábil, colorida e corriqueira. Como, aliás, fazem todos os adolescentes de qualquer canto e de qualquer época, a não ser que sejam de seriados americanos sobre famílias.
Também, a julgar pelo retrato a óleo que Manet fez dos pais em 1860 (às vésperas da sua guinada), no qual surgem como figuras depressivas e sombrias, quase aterradoras, não é de se estranhar nenhuma reticência.
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