(resenha publicada originalmente, sem as notas de rodapé, em A TRIBUNA de Santos de 10 de maio de 2011)
“Não era capaz de dobrar Veda, por mais que batesse nela, a filha emergia vitoriosa desses embates e ela sofria uma derrota trêmula, ignóbil. Era sempre a mesma coisa. Ela sentia medo de Veda, de seu esnobismo, de seu desprezo, de seu espírito inquebrantável. E temia algo que se ocultava sempre sob a falsa sofisticação de Veda: um desejo frio, cruel e vulgar de torturar a mãe, de humilhá-la e, acima de tudo, de magoá-la. Mildred ansiava desesperadamente pelo carinho da filha… Mas só recebia dela uma contrafação afetada, teatral. Tinha de aceitar esse prêmio de consolação, tentando não vê-lo pelo que realmente era…”
A HBO está exibindo a caprichada minissérie Mildred Pierce, com a maravilhosa Kate Winslet[1]t. O autor do romance que a originou (publicado em 1941), James M. Cain (1892-1977), sempre foi mais conhecido por suas duas outras obras que geraram versões cinematográficas que se tornaram clássicos do noir: Pacto de sangue (na verdade, Indenização em dobro), um dos melhores filmes de Billy Wilder & O destino bate à sua porta (a versão com John Garfileld e Lana Turner é paradigmática como a de Wilder, mas não se pode esquecer das versões de Visconti e Bob Rafelson). E a história de Mildred Pierce ficou famosa mesmo quando Joan Crawford estrelou Alma em suplício (o delicioso título nacional), de Michael Curtiz, em 1946, ganhando o Oscar (as posteriores revelações de sua filha adotiva sobre a suposta crueldade da “mamãezinha querida” Joan Crawford acrescentaram uma camada a mais à mítica do filme).
No entanto, A história de Mildred Pierce (o rebarbativo título que o livro recebeu por aqui, na tradução de Celso Nogueira) transcende qualquer uma de suas adaptações. Trata-se de um texto extraordinário, o qual equivocadamente foi lançado na (ótima, deve-se ressaltar) coleção de livros policiais da Companhia das Letras. Pois ainda que seja um mestre do gênero, Cain não o exercitou aqui. Não há crime passível de punição da lei, embora haja transgressões reiteradas da chamada moral convencional, do senso comum de ética e decência. É uma radicalização surpreendente e melodramática no bom sentido) de uma linha de histórias que mostram conflitos entre mãe e filha, tais como consagradas por Hollywood, em filmes como Imitação da vida (em suas duas versões) ou Stella Dallas (que tem um subtítulo nacional emblemático: Mãe redentora) e que foi reaproveitada tanto em telenovelas (a Maria de Fátima de Vale Tudo, de Gilberto Braga, é um similar de Veda Pierce, a filha malvada e ingrata) quanto na releitura paródica de um Almodóvar num de seus melhores filmes, De salto alto[2], que enfatiza o aspecto patológico da relação, aspecto muito presente em Mildred Pierce, e que vemos, por exemplo, numa passagem logo depois da inesperada morte de Ray, a filha caçula da protagonista: “…os relâmpagos pipocaram uma vez, iluminando agora sua dor com luz ofuscante. Veio a torrente de soluços convulsos, e finalmente ela cedeu ao sentimento ao qual vinha resistindo: o regozijo culpado e irreprimível por sua outra filha ter sido levada, e não Veda” e logo a seguir: “Havia algo de desnaturado e doentio no modo como inalava o cheiro de Veda ao decidir dedicar o resto da vida á filha que fora poupada…”
Há duas leituras “gerais” que podem ser feitas da obra-prima de Cain: na primeira delas, vemos que ele realizou um tour-de-force do romance realista, aproveitando as lições de Flaubert e Theodore Dreiser, ao contar a história de uma mulher classe média e suburbana que indignada pelo fracasso do marido como provedor (diga-se de passagem, ela se sente inferior a ele, a quem a filha puxou, a não ser pela moleza), o enxota de casa e se vê em dificuldades financeiras, principalmente porque não quer envergonhar a filha esnobe. Como é uma cozinheira de mão cheia, atrai para si muitos fregueses (após se tornar garçonete, uma degradação social), porque faz tortas irresistíveis, e abrindo seu próprio restaurante, ao qual se agregarão três filiais. Envolve-se com Monty, outrora ricaço, mas decadente playboy de Pasadena (o mundo social que Veda cobiça), e para reconquistar a filha, que se afastou após um “golpe da barriga”, decide-se casar com ele e comprando e reformando sua mansão. Veda realmente volta, mas o padrão de vida a que obriga a mãe (o padrão “colunas sociais”) leva Mildred à ruína (ela rouba da própria firma), e a perversa moça ainda por cima se revela a amante do padrasto (uma cena antológica)… Tudo é narrado de uma maneira flaubertiana, precisa, admirável: vemos “cenas” perfeitas desdobrando-se diante de nós.
Mas a outra leitura que se pode fazer é ainda mais interessante: muito além do a feliz fusão entre o dramalhão folhetinesco e o painel realista, A história de Mildred Pierce se parece com aquelas histórias de Nélson Rodrigues sobre Engraçadinha, contadas epicamente em Asfalto selvagem, ou aquelas historietas de A vida como ela é, em que tudo é tão exagerado e extremo que cruzamos um umbral e entramos numa espécie de mundo arquetípico, onde as fantasias, as pulsões, os recalques, os anseios de ascensão social da classe média se tornam puros símbolos. Nesse ponto, o filme de Michael Curtiz banalizou a história ao torná-la um melodrama policial convencional, para que a filha não deixe de punida no final[3]. O livro está muito mais próximo da maneira como Antunes Filho caracteriza o teatro de Nélson Rodrigues: “Claro que há aspectos do cotidiano, do prosaico. Mas isso é aparência… Por baixo, fervem os mitos”.


[1] A concepção e direção é de Todd Haynes, que realizou o melodrama programático Longe o Paraíso, que não me convenceu muito, na sua atualização conceitual da atmosfera dos filmes de Douglas Sirk, que eu vejo enquadrados naquela categoria de fruição perversa do ridículo.
[2] Os Almodovar nessa linha (e penso como auge de sua produção, tanto em De salto alto quanto em A flor do meu segredo, meus favoritos entre seus filmes me parecem muito mais eficientes do que as tentativas de Todd Haynes de ressuscitar o espírito do melodrama com grandiosidade.
[3] Apesar dessa ressalva e do fato de que Joan Crawford com sua cara impávida ser totalmente inverossímil como a Mildred Pierce idealizada por Cain, o filme (cujo roteiro tem como um dos colaboradores William Faulkner é exemplar na sua estrutura dramática de melodrama criminal: a história toda é contada num depoimento na delegacia, quando Mildred quer assumir a culpa pela morte de Monty (assassinado por Veda, o que não acontece no romance,). A mudança mais significativa da história está no quilate de Veda. Enquanto no livro ela se transforma numa soprano de voz rara, e que só permanece na órbita da mãe por motivos patológicos (o que vai redundar no filme sumamente irônico do livro), no filme Ann Blyth após o golpe da barriga (frustrado por Mildred, outra discrepância com relação ao livro, no qual ela consegue um capital considerável) “cai na vida” como cantora chinfrim de uma espelunca. Sua dependência da mãe e seu apego a Monty é que precipitam a tragédia final. O filme atenua muito o lado monstruoso e doentio do amor de Mildred (mesmo porque há aqueles clichês consolidados sobre o amor materno na mente do público médio, o qual não aceitaria decerto toda a parte final do romance, caso se mantivessem fiel a ela), embora ele continue excessivo, ao ponto do sacrifício e da renúncia, “alma em suplício”.
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