
RAINER MARIA RILKE
Fragmentos das ELEGIAS DE DUÍNO
O sentir em nós, ai, é o dissipar-se.
Exalamos nosso ser; e de uma a outra ardência
Nos desvanecemos. Alguma vez nos dizem:
Circulas no meu sangue, este quarto, a primavera
Estão cheios de ti. Inutilmente procuram nos reter
Evolamos. E aqueles que são belos, oh, quem os
Deteria? A aparência transita sem descanso em seu rosto
E se dissipa. Tal o orvalho da manhã
E o calor do alimento, o que é nosso
Flutua e desaparece. Ó sorrisos, para onde?
E tu, olhar erguido, fugitiva onda ardente e nova
Do coração? Ai de nós, assim somos.
Estará o mundo impregnado de nós, pois que
Nele nos perdemos? E os Anjos
Retomarão apenas o que deles emanou?
Talvez um pouco de humano se encontre às vezes
Em seus traços, como o vago no rosto das mulheres
grávidas? Eles porém nada percebem
No turbilhão da volta a si mesmos.”
“E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo
do meu soluço obscuro. Ai, quem nos poderia
valer? Nem anjos nem homens.
E o intuitivo animal logo adverte
que para nós não há amparo
neste mundo definido. Resta-nos, quem sabe,
a árvore de alguma colina que podemos rever
cada dia; resta-nos a rua de ontem
e o apego cotidiano de algum hábito
que se afeiçoou a nós e permaneceu.
E a noite, a noite, quando o vento pleno dos espaços
do mundo desgasta-nos a face—a quem se furtaria ela,
a desejada, ternamente enganosa, sobressalto para o
coração solitário? Será mais leve para os que se amam?
Ai, apena ocultam eles, um ao outro, seu destino.
Não o sabias? Arroja o vácuo aprisionado em teus braços
para os espaços que respiramos –talvez os pássaros
sentirão o ar mais dilatado, num vôo mais comovido.”

O outro tigre (Jorge Luis Borges, El Hacedor)
Penso num tigre. A penumbra exalta
A vasta biblioteca laboriosa
E parece afastar suas estantes;
Forte, inocente, ensangüentado e novo,
Ele irá por sua selva e sua manhã
E deixará seu rastro na lodosa
Margem de um rio cujo nome ignora
(Não há em seu mundo nomes nem passado,
E nem porvir, só um instante determinado)
E vencerá as bárbaras distâncias,
Farejará no enleado labirinto
De todos os odores o da aurora
E o olor deleitável do cervo;
Em meio às riscas do bambu decifro
Suas riscas e pressinto a ossatura
Sob a pele esplêndida que vibra.
Debalde interpõem-se os convexos
Mares e desertos do planeta;
E desta morada de um remoto porto
Da América do Sul, te sigo e sonho,
Ó tigre das beiras do Ganges.
Corre a tarde em minha alma e conjecturo
Que o tigre vocativo do meu verso
É um tigre de símbolos e sombras,
Uma série de tropos literários tropos- lugares comuns
E de reminiscências da enciclopédia,
Não o tigre fata, a aziaga jóia
Que sob o sol ou a cambiante lua,
Vai cumprindo em Sumatra ou em Bengala
Sua rotina de ócio, amor e morte.
A esse tigre dos símbolos opus
O verdadeiro, o de sangue quente,
O que dizima a manada de búfalos
E a três de agosto de 59 (Hoje),
Estende sobre o prado uma pausada
Sombra, mas só o fato de nomeá-lo
E de conjecturar-lhe a circunstância
Da arte o faz ficção e não a criatura
Vivente, dessas que andam pela Terra.
Procuraremos um terceiro tigre.
Este, como os demais, será uma forma
De meu sonho, um sistema de palavras
Humanas, não o tigre vertebrado
Que, para além dessas mitologias,
Percorre a Terra. Bem o sei, mas algo
Me impõe esta aventura indefinida,
Insensata e antiga, e persevero
Pelo tempo da tarde na procura
Do outro tigre, o que não está no verso.
NOITE DE SÃO JOÃO (de Fervor de Buenos Aires)
O poente implacável em esplendores
quebrou a fio de espada as distâncias.
Suave como um salgueiral está a noite.
Vermelhos faíscam
os redemoinhos das grandes fogueiras;
lenha sacrificada
que se dessangra em altas labaredas,
bandeira viva e cega travessura.
A sombra é aprazível como uma lonjura;
hoje as ruas lembram
que foram campo um dia.
Toda a santa noite a solidão rezando
seu rosário de estrelas esparramadas.
(trad. Glauco Mattoso)

UMA IMPRESSÃO DE DON JUAN
(Vicente de Carvalho)
Gastei no amor vinte anos –os melhores,
Da minha vida pródiga: esbanjei-os
Sem remorso nem pena, nem galanteios,
Colhendo beijos, desfolhando flores.
Quentes olhares de olhos tentadores,
Suspiros de paixão, arfar de seios,
Conheci-os, buscaram-me, gozei-os…
Li, folha a folha, o livro dos amores.
Quanta lembrança de mulher amada!
Quanta ternura de alma carinhosa!
Sim, tanto amor que me passou na vida!
E nada sei do amor… Não, não sei nada,
E cada rosto de mulher formosa
Dá-me a impressão de folha inda não lida.

A VIA LÁCTEA (sétimo soneto)
Olavo Bilac
Não têm faltado bocas de serpentes
(Dessas que amam falar de todo o mundo
E a todo o mundo ferem, maldizentes)
Que digam: Mata o teu amor profundo!
Abafa-o, que teus passos imprudentes
Te vão levando a um pélago sem fundo…
Vais te perder! -E arreganhando os dentes
Movem para o teu lado o olhar imundo:
-Se ela é tão pobre, se não tem beleza
Irás deixar a glória desprezada
E os prazeres perdidos por tão pouco?
Pensa mais no futuro e na riqueza!
-E eu penso que afinal… Não penso nada:
Penso apenas que te amo como um louco!
ANTÍGONA
A terra treme. Rola o trovão. Brilha o espaço.
Chega Édipo a Colono, em andrajos, imundo,
Sombra ansiosa a fugir do próprio horror profundo,
Ruína humana a cair de miséria e cansaço.
Mas, quando o ancião vacila, órfão da luz do mundo,
Antígona lhe estende o coração e o braço,
E, filha e irmã, recolhe ao maternal regaço
O rei sem trono, o pai sem honra, moribundo.
É o ninho (a terra treme…) amparando o carvalho,
A flor sustendo o tronco! Édipo (o espaço brilha…)
Sorri, como um combusto areal bebendo o orvalho.
É o fim (rola o trovão…) da miseranda sorte:
O cego vê, fitando o céu do olhar da filha,
Na cegueira o esplendor, e a redenção na morte.

Uma palavra sobre o verão
(Giorgios Seferis, poeta grego, Nobel 1963)
Eis que voltou o outono. O verão
Como um caderno em que cansamos de escrever, lá fica
Cheio de riscos e garatujas,
De pontos de interrogação nas margens. Eis que voltou
A estação dos olhos que miram
Nos espelhos, sob as lâmpadas,
Lábios cerrados, homens estrangeiros
Nos quartos, nas ruas, sob as pimenteiras,
Enquanto os faróis dos carros matam
Milhares de máscaras macilentas.
Eis-nos de volta. Partimos para cada vez voltar
Na solidão, um punhado de terra em nossas mãos vazias.
E não obstante, amei outrora o bulevar Syngros,
A dupla curvatura da grande avenida
Que milagrosamente nos leva para o mar
Eterno a fim de que nos lavemos dos pecados.
Amei homens desconhecidos
Encontrados bruscamente ao cair do dia
Que falavam consigo mesmos como capitães de uma frota afundada,
Sinais de que o mundo é vasto.
E não obstante, amei as ruas daqui e estas colunas
Ainda que nascido na outra margem, junto
Das canas e dos juncos, das ilhas
Cuja areia guarda água para a sede
Do remador: ainda que nascido
Junto do mar que desenrolo e enrolo entre meus dedos,
Quando estou fatigado– não sei mais onde nasci.
Resta ainda a essência amarela, o verão
E tuas mãos roçando medusas na água,
Teus olhos abertos de repente, os primeiros
Olhos do mundo, e as grutas marinhas,
Pés desnudos no solo vermelho.
Resta ainda o efebo louro de pedra,o verão,
Um pouco de sal seco no oco de um rochedo,
Algumas agulhas de pinheiro após a chuva
Ruivas e dispersas como um filete em fiapos.
Não compreendo esses rostos, não os compreendo;
Imitam às vezes a morte e depois iluminam-se de novo
Com uma vida rasteira de vermes luzentes,
Com um esforço repuxado, sem esperança,
Como apertado entre duas rugas
Entre duas mesas de café gordurosas…
(…) Resta ainda o deserto amarelo, o verão,
Vagas de areia em fuga até o último círculo
Um ritmo de tambor lancinante, interminável
Olhos inflamados afundando no sol,
Mãos com ímpetos de pássaros riscando o céu
Saudando filas de mortos em duelos,
Perdidas num ponto que me ultrapassa e me governa,
Tuas mãos que tocam a onda livre.
(trad. Darcy Damasceno)

Anunciação & Encontro de Mira-Celi (quadragésimo poema)
(Jorge de Lima)
Quando sentires tua carne incendiar-se
e a labareda divina altear-se no ar,
desfralda tua bandeira neste tope*,
que logo virão dos quatro pontos cardeais
os conspiradores que precisas;
pois tua língua não pode continuar a que herdaste
nem os teus homens são os que hoje te cercam.
Antes que os tambores ensurdeçam teus ouvidos
e teu passo se cadencie num galope constante,
vê que a dor do mundo deseja redimir-se em teu canto.
É certo que te esmagarão como se esmaga uma asa.
Mas as penas que espalhares no chão
podem voar ao vento
e baixar com sua sombra mínima
sobre qualquer ovo perdido dentro dos ninhos abandonados.
Entre a noite e o mar visitarás de novo
os litorais desertos, e semearás teu pólen.
Hão de cair sobre ele as chuvas que lavam as tempestades,
e se os homens não quiserem ouvir-te,
ressurgirás para as abelhas ou para as solidões
em que Deus ouvirá as palavras do Início.


Relógio do Rosário (de Claro Enigma)
(Carlos Drummond de Andrade)
Era tão claro o dia, mas a treva,
do som baixando, em seu baixar me leva
pelo âmago de tudo, e no mais fundo
decifro o choro pânico do mundo,
que se entrelaça no meu próprio choro,
e compomos os dois um vasto coro.
Oh dor individual, afrodisíaco
selo gravado em plano dionisíaco,
a desdobrar-se, tal um fogo incerto,
em qualquer um mostrando o ser deserto,
dor primeira e geral, esparramada,
nutrindo-se do sal do próprio nada,
convertendo-se, turva e minuciosa,
em mil pequena dor, qual mais raivosa,
prelibando o momento bom de doer,
a invocá-lo, se custa a aparecer,
dor de tudo e de todos, dor sem nome,
ativa mesmo se a memória some,
dor do rei e da roca, dor da cousa
indistinta e universa, onde repousa
tão habitual e rica de pungência
como um fruto maduro, uma vivência,
dor dos bichos, oclusa nos focinhos,
nas caudas titilantes, nos arminhos,
dor do espaço e do caos e das esferas,
do tempo que há de vir, das velhas eras!
Não é pois todo amor alvo divino,
e mais aguda seta que o destino?
Não é motor de tudo e nossa única
fonte de luz, na luz de sua túnica?
O amor elide a face… Ele murmura
algo que foge, e é brisa, e fala impura.
O amor não nos explica. E nada basta,
nada é de natureza assim tão casta
que não macule ou perca sua essência
ao contato furioso da existência.
Nem existir é mais que um exercício
de pesquisar de vida um vago indício,
a provar a nós mesmos que, vivendo,
estamos para doer, estamos doendo.
Mas, na dourada praça do Rosário,
foi-se, no som, a sombra. O columbário
já cinza se concentra, pós de tumbas,
já se permite azul, risco de pombas.


“o barulho de existir:
um cão dentro
de mim
um cão dentro
de mim
atravesso
como a um pátio:
o barulho de existir”
A CHUVA DO VELHO TESTAMENTO (trechos)
(Carlos Nejar, O chapéu das estações)
“Quis possuir a alma,
possuí-la um instante,
numa respiração
que a conjugasse
em suas potências
e fosse alma
em corpo atravessada.
Quis possuir a alma,
mas de súbito
é uma conspiração
de antigos súditos
que a obriga sucumbir.
E é luz varando luz
de inerte vinco.
Quis possuir a alma,
a rebelião mais pura
de ser Deus
no Deus que me conjura.
Quis possuir a alma
como se um arado empurrasse
na soga deste instante
o corpo amado
para o corpo amante.
Quis possuir a alma
e a vislumbrei inteira
e alheia corpo adentro
como se alguma barca
fosse somente vento”
…
“Fui condenado ao corpo.
Como isolar a alma,
se está morto?
Como isolar a alma
se ela é corpo
e sabe conluiar os elementos
de sua retração, seu desespero?
Mas o corpo transgride
onde fora trancado.
E é vivo o condenado,
mesmo se a alma já morreu
nos arredores.
Se o corpo não é seu,
a alma estende
a renitência a outras,
entre as formas do céu
e dos planetas.
Eu tive a rebelião
de ser um corpo.
Fui condenado a Deus,
a seu estado mais feroz,
aquele que, de amor,
as coisas tremem
e as vozes não conseguem separar.
Fui elevado ao corpo”
********************
Trecho de A árvore do mundo (do mesmo autor)
“O humano é custo,
empresa que se apresta
no deter
e detendo, cobra,.
E sobrando,
se gasta.
Mais preciso:
a parede do tempo
de estar vivo.
A parede sem nível
do possível.
Salvar? Mas estou salvo,
sou matéria.
Nenhum impedimento de subir,
exceto a condição de ser humano.
Mas esta é de romper.
Um osso, um plasma, uma epiderme,
o susto.
Quanto nos apanha, nos encerra
a popa de uma nau
que é apenas alma.”

HILDA HILST: Cantares de perda e predileção
“Vida da minha alma:
Recaminhei casas e paisagens
Buscando-me a mim, minha tua cara.
Recaminhei os escombros da tarde
Folhas enegrecidas, gomos, cascas
Papéis de terra e tinta sob as árvores
Nichos onde nos confessamos, praças
Revi os cães. Não os mesmos. Outros
De igual destino, loucos, tristes,
Nós dois, meu ódio-amor, atravessando
Cinzas e paredões, o percurso da vida.
Busquei a luz e o amor. Humana, atenta
Como quem busca a boca nos confins da sede.
Recaminhei as nossas construções, tijos
Pás, a areia dos dias
E tudo que encontrei te digo agora:
Um outro alguém sem cara. Tosco. Cego.
O arquiteto dessas armadilhas.”

HILDA HILST: ODES MÍNIMAS
“Perderás de mim
Todas as horas
Porque só me tomarás
A uma determinada hora
E talvez venhas
Num instante de vazio
E insipidez
Imagina-te o que perderás
Eu que vivi no vermelho
Porque poeta, e caminhei
A chama dos caminhos
Atravessei o sol
Toquei o muro de dentro
Dos amigos
A boca nos sentimentos
E fui tomada, ferisa
De malassombros, de gozo
Morte, imagina-te.”
Gostei muito dos poetas e dos poemas selecionados. Obrigado pela sua Antologia, que tem espírito próprio.
Comentário por Darío — 14/07/2010 @ 17:46 |
Obrigado, Dario. Na verdade, essa antologia foi se organizando assim: tirando textos do Whitman e do Baudelaire, que foram os que usei num curso que dei sobre ambos em 2007, o resto eu costumava mandar como complemento de e-mail a amigos; assim como tem gente que manda emoticons, eu gostava de enviar um poema. Um grande abraço.
Comentário por alfredomonte — 15/07/2010 @ 15:53 |
Gostei da seleção!
A foto do Walt Whitman velho, adorei me reportou a elegia dos profetas! rsrsrs
gracias,salvei no meu pc
abraço
Comentário por ruth shafa — 06/11/2010 @ 17:16 |
Valeu, um grande abraço.
Comentário por alfredomonte — 07/11/2010 @ 14:30 |
belíssima seleção, um encanto dominical.
como gosto do jorge de lima!
abraço
denise
Comentário por denise bottmann — 17/04/2011 @ 0:18 |
Gostei muito dos poemas seleccionados, principalmente Rilke e Seferis.
Comentário por A. José de Sousa — 29/05/2012 @ 14:04 |
Obrigado. Eles são realmente lindos, não?
Abração, Alfredo.
Comentário por alfredomonte — 29/05/2012 @ 18:19 |