(resenhas publicadas originalmente em A TRIBUNA de Santos, respectivamente em 14 de setembro & 21 de setembro de 2004)
I
Nicole Kidman ganhou o Oscar interpretando uma Virginia Woolf, a qual, nas argutas palavras de Doris Lessing, jamais sorri, sempre franzindo a testa para mostrar os pensamentos profundos e difíceis que estão passando por sua cabeça, numa apoteose do clichê do escritor sofredor e sensível.
Virginia Woolf sofreu deveras e tinha apurada sensibilidade, porém sua obra é perpassada por um humor especial, muito inglês. Além disso, era uma escritora muito inteligente e rigorosa, bastante consciente: após dois romances relativamente convencionais, The voyage out (aqui no Brasil, apenas A viagem) e Noite & Dia, escreveu o originalíssimo O quarto de Jacob, publicado quando ela atingiu os 40 anos (1922).
A partir daí, cada livro seu foi um experimento mais radical e inventivo: Mrs. Dalloway (1925), Ao farol (1927), Orlando (1928), chegando ao ponto máximo em 1931, com AS ONDAS (que teria o título, inicialmente, de “The moths” ), depois do qual tentaria nova e inusitada tentativa no romance realista tradicional, em Os anos (1937), até chegar ao seu último experimento, o seu toque de Ariel, um exercício de leveza etérea e diáfana, mas que parece conter a vida inteira: Entre os atos, publicado após seu suicídio em 1941.
Como todos os escritores que têm leitores apaixonados, há aqueles que preferem um ou outro dos seus romances, e fazem alarde disso, diminuindo um pouco os restantes, o que é uma bobagem numa obra onde todos são interessantes e elos de uma corrente, e na qual encontramos pelo menos quatro simplesmente geniais (e Orlando é um caso à parte). Se tivesse de optar, fazer a seleção daquele que eu levaria para uma ilha deserta, não hesitaria em escolher AS ONDAS.
Tinha 16 anos quando o livro foi finalmente editado no Brasil, em 1981 (é a tradução que está sendo relançada agora, de Lya Luft) e é difícil esquecer o impacto e a emoção com uma experiência de linguagem que, para mim, representou a consolidação de um padrão de exigência literária.
Guimarães Rosa costumava dizer (embora seu só tenha lido isso em Uma poética de romance: matéria de carpintaria, de Autran Dourado, e em nenhum outro lugar): “faça pirâmides, não faça biscoitos”. Virginia Woolf subverte essa dicotomia totalmente. Ao contrário de outros pontos altos da ficção modernista, como Ulisses, A montanha mágica, O castelo ou Grande sertão: veredas, sua maior obra nada tem de pirâmide, no sentido monumental. Trata-se de um biscoito que revoluciona o paladar do degustador, que muda sua percepção das coisas e do mundo.
Temos a encenação de um dia da natureza, focalizando o mar desde o princípio do dia até o anoitecer. Enquanto as ondas rufam na praia, “como guerreiros com turbantes que brandiam suas azagaias envenenadas sobre suas cabeças”, seis personagens tomam a palavra, cada um isolado em seu monólogo, desde a infância até o anoitecer: três homens (Bernard, Louis, Neville), três mulheres (Jinny, Rhoda, Susan).
Bernard é quem aparentemente mais toma a palavra. Ele é aquele que necessita “do que é concreto em todas as coisas. Só assim consigo tocar o mundo. Contudo, uma boa frase parece-me ter existência independente. Ainda assim, acho que as melhores frases são feitas na solidão. Exigem não sei que refrigeração final que não lhes posso dar, eu que vivo a chapinhar no meio a palavras mornas, solúveis”.
II
É uma pena a Nova Fronteira ter omitido da nova edição de AS ONDAS a analogia que Marguerite Yourcenar faz da obra-prima de Virginia Woolf (traduzida por ela para o francês) com as variações de uma peça musical, ainda mais quando se mantiveram erros crassos (e se acrescentaram vários outros): na orelha, lemos que se trata do “sexto” romance da autora inglesa; qual dos seis anteriores (A viagem; Noite & Dia; O quarto de Jacob; Mrs. Dallowqy; Ao farol e Orlando) não seria um “romance”?
Em AS ONDAS alternam-se monólogos (da infância à velhice) de seis personagens. Há o par mais mundano, mais Dalloway, por assim dizer, no sentido de estar à vontade no mundo e com os outros: Bernard e Jinny; há o par aparentemente inadaptado e desajeitado, para quem o mundo é cheio de estranhos: Neville e Susan, os quais, entretanto, tem atrás de si os privilégios de classe típicos da Inglaterra.
O verdadeiro desamparo fica reservado ao par (aos párias) Louis-Rhoda, ele mergulhado no mundo do trabalho, ela jamais definindo um contorno para o seu ser: “…percebi, por seus casacos e guarda-chuvas, mesmo à distância, como estavam embebidos numa substância feita da reunião de repetidos momentos: estão comprometidos, têm uma atitude, filhos, autoridade, fama, amor, sociedade, ao passo que eu não tenho nada. Não tenho rosto”.
Uma das chaves do livro é o sétimo personagem: Percival. Há uma tendência na literatura inglesa, que prolonga a mentalidade greco-romana clássica (essa filiação de AS ONDAS já fica clara na alusão à aurora de róseos dedos dos poemas homéricos: “…o céu se fez translúcido… como se o braço de uma mulher deitada sob o horizonte erguesse uma lâmpada… Devagar, o braço que sustinha a lâmpada ergueu-a mais alto e uma larga chama aparece enfim”, temos aí natureza e tradição cultural): a exaltação da juventude e da beleza, que coloca o resto numa perspectiva angustiante, de declínio e desperdício. Percival, já portador de nome romanesco, é belo, inconsciente e morre jovem, após ter catalisado o embevecimento e a inveja dos demais, permanecendo como um Dorian Gray fantasmagórico ao longo das suas vidas.
Em tempo: está sendo lançado também A casa de Carlyle e outros esboços (Carlyle´s house and other sketches, organizado por David Bradshaw e traduzido por Carlos Tadeu Galvão), um daqueles inevitáveis títulos póstumos que exumam morbidamente textos (no caso, de 1909) os quais talvez devessem permanecer jazendo no fundo da gaveta. E que, ao fim e ao cabo, ocupam apenas vinte páginas da edição. O resto é formado por notas e comentários, embora haja um inesperado presente: um prólogo maravilhoso e penetrante de Doris Lessing que, aos 84 anos, ainda está com a corda toda. O maior dos escritores vivos é uma presença tão poderosa nas páginas de A casa de Carlyle que acaba por relegar a própria autora dos textos a segundo plano.
alfredo,
o que há na ficção da Doris Lessing ou nela mesma que lhe faz dizer que ela é “o maior dos escritores vivos”?
pergunto por curiosidade mesmo, por querer aprender.
paquero ela.
desde adolescente, quando vi “o carnê dourado” no círculo do livro. cheguei até a folhear e achei aquilo um livrão.
tenho “o verão antes da queda” e “amor, de novo”. qual deles acha melhor?
sim, e por que a sua afirmação sobre ela?
=]
abraço.
gostei demais do post.
Comentário por niltonresende — 11/02/2011 @ 0:29 |
Caro Nilton, desde que li “Roteiro para um passeio ao inferno” (eu tinha 18 anos), Doris Lessing entrou fundo na minha vida, tanto literária quanto extra-literariamente, pelas idéias, pela visão do mundo… Depois que li “Shikasta” e “A cidade de quatro portas”, então, eu me senti como nunca antes como leitor: engolfado.
Gosto muio de “Amor, de novo”. Mas “O verão antes da queda”, sem deixar de ser bom, é o livro dela que menos me envolve. E “O carnê dourado” é uma obra-prima da literatura (os acima citados são obras-primas que deixam para trás a literatura).
É isso aí. Há um post no meu blog chamado “Múltipla Doris Lessing” em que tento desvendar para mim mesmo o feitiço lessinguiano.
Um abração.
Comentário por alfredomonte — 11/02/2011 @ 10:01 |
valeu.
vou ler.
=]
e coloque logo os “botõezinhos” no blog, pô.
Comentário por niltonresende — 11/02/2011 @ 10:04
J tentei…
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Comentário por alfredomonte — 11/02/2011 @ 10:21
oxe.
=[
depois dou um jeito de dizer melhor os passos, então.
Comentário por niltonresende — 11/02/2011 @ 10:24 |