(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 12 de março de 2002)
Samuel Beckett (1906-1989) sempre foi no Brasil apenas o autor de Esperando Godot. Nem mesmo a publicação (nos anos 80) da trilogia Molloy/Malone morre/O inominável mudou muito isso. A esperada tradução da extraordinária Fim de partida talvez modifique um pouco o panorama. Pois se Godot é uma grande peça, é difícil imaginar a ficção após a trilogia mencionada e o teatro após Endgame (ou Fin de partie, Beckett transitou entre as duas línguas). A experiência de ler e ver esse texto é de estranheza absoluta. Temos um cenário despojado onde restos da humanidade se digladiam, onde cada dia é imutável no processo de se torturar, humilhar e constatar que o fim nunca chega e que a agonia se arrasta. Diálogos nunca representam comunicação ou fraternidade.
Tanto na apresentação à sua tradução quanto no livro que publicou a partir de sua tese de doutorado (Samuel Beckett: o silêncio possível), no qual há um capítulo inteiro dedicado à elaborada gênese de Fim de partida, Fábio de Souza Andrade cita as seguintes palavras do autor irlandês: “não há nada a expressar, nada com que expressar, nada a partir do que expressar, nenhuma possibilidade de expressar, nenhum desejo de expressar, aliado à obrigação de expressar”.
Em Mercier e Camier, há o seguinte diálogo entre os protagonistas:
“- Se nada temos a dizer,não digamos nada
– Nós temos coisas a dizer.
– Então por que não as dizemos?
– Não podemos
– Então fiquemos calados.
– Mas estamos tentando.”
Por sua vez, Hamm, o terrível protagonista de Fim de partida, irrita-se com a falação de Nagg e Nell, seus pais (os quais, mutilados, vivem confinados em latões de lixo): “Vocês não acabaram? Não vão acabar nunca? Isso não vai acabar nunca! Mas do que eles falam? De que se pode falar ainda?”
Mais adiante, numa cena com o criado/filho Clov, Hamm fica inquieto: “Não estamos começando a… a significar alguma coisa?” Clov ri: “Significar? Nós, significar! Ah, essa é boa” (num momento de revolta, Clov ridiculariza a linguagem: “Uso as palavras que você me ensinou. Se não querem dizer mais nada, me ensine outras. Ou deixe que eu me cale”).
O próprio Hamm fala e fala, atormentando os pais e Clov. Aliás, o angustiante da peça é que estamos vendo um estágio terminal da humanidade (Hamm está cego e paralítico), nem por isso a tirania e mesquinharia deixam de existir, nem por isso carências, desejos, enfim, a vontade do ego, deixam de existir, como se fossem a última tábua de salvação a que se pudesse agarrar antes do naufrágio final.
Por isso, são pertinentes os paralelos shakesperianos com as figuras de Lear (o soberano decaído) e Próspero (a relação de escravidão Hamm-Clov lembra, parodicamente, a que o mago mantinha com Ariel, em A tempestade). E não só eles: Ricardo III dizia “meu reino por um cavalo”; cercado de rebotalhos humanos e objetos que perderam a sua utilidade, Hamm diz “Meu reino por um lixeiro” (e não deixa de ser uma ironia a mais, quando se pensa que seus pais estão em latões de lixo).
Há uma linha de interpretação da peça que acredita que tudo (cenário, os outros personagens) são projeções da mente de Hamm. Nós estamos vendo, na verdade, os estertores de sua consciência lutando contra a falência generalizada do corpo. É possível, embora nenhuma interpretação definitiva “pegue” em se tratando de Beckett. Se pensarmos em Malone morre temos também lampejos (ou cacarecos) de uma mente que mantém uma sobrevida execrável num corpo agonizante. Só que numa narrativa é possível manter-se confinado nos limites da consciência e do discurso do narrador (no “manicômio do crânio”, expressão que aparece em Mal visto Mal dito, de 1981). Mesmo que nada aconteça em termos de ação em Fim de partida, o teatro tem exigências cênicas e dramáticas que não permitiriam , mesmo à mais ousada radicalidade, não mostrar nenhum confronto entre personagens no palco.
E, por incrível que pareça, para uma peça “onde nada acontece” Fim de partida tem uma energia e um dinamismo inesperados, e até aspectos muito engraçados, talvez porque no comportamento dos personagens há um misto de “clochard” (os famosos mendigos de Paris) e de “clown”. É lógico que é preciso ser dotado de um sentido de humor muito peculiar para achar graça (como eu) no diálogo em que Clov pergunta a Hamm: “Você acredita na vida depois da morte?” e ele responde: “A minha sempre foi”. A “moral” da peça, por assim dizer, está sintetizada numa fala de Nell: “Nada é mais engraçado que a infelicidade, com certeza”. O riso a caminho do patíbulo.
Simone de Beauvoir, em A força das coisas, escreveu algo muito bonito sobre o teatro de Beckett: “Desconfio das peças que apresentam através de símbolos a condição humana em sua generalidade; mas admirei o fato de Beckett conseguir cativar-nos, simplesmente pintando essa incansável paciência que retém na terra, contra tudo e contra todos, nossa espécie e cada um de nós; eu era um dos atores do drama, tendo por parceiro o autor; enquanto esperávamos –o quê?— ele falava, e eu escutava; pela minha presença e pela voz dele, mantinha-se uma inútil e necessária esperança”.
O que Beckett fala (a obrigação de expressar?) e nós escutamos, em Fim de partida, é muito mais sombrio (Simone de Beauvoir se referia à Esperando Godot), mas é apenas um passo adiante dessa incansável paciência, dessa inútil e necessária esperança. Ou, como paradoxalmente afirma Hamm: “o fim está no começo e no entanto continua-se…”
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