“Daqui onde estou posso ouvi-lo pensando da lucidez de um instante à opacidade de infinitos dias, posso ouvi-lo pensando nas diversas formas de loucura e suicídio. A loucura da busca, essa feita de círculos concêntricos e nunca chegando ao centro, a ilusão encarnada ofuscante de encontrar e compreender. A loucura da recusa, de um dizer tudo bem, estamos aqui e isto nos basta, recusamo-nos a compreender. A loucura da paixão, o desordenado aparentando ser luz na carne, o caos sabendo à delícia, a idiotia simulando afinidades. A loucura do trabalho e do possuir. A loucura do aprofundar-se depois olhar à volta e ver o mundo mergulhado em matança e vaidade, estar absolutamente sozinho no mais profundo. Amós está? Daqui onde estou posso ouvi-lo pensando como devo matar-me? Ou como devo matar em mim as diversas formas de loucura e ser ao mesmo tempo compassivo e lúcido, criativo e paciente, e sobreviver?”
(a resenha abaixo foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 08 de fevereiro de 2011)
Durante a maior parte da sua longa carreira, iniciada em 1950, Hilda Hilst (1930-2004) teve seus textos publicados por editoras obscuras—no sentido da distribuição e alcance comercial—e pequenas (por exemplo, a Massao Ohno). Era uma grande escritora “invisível” para o público, apesar do seu prestígio e dos seus cultuadores.
Quando ganhava notoriedade, era sempre por aspectos folclóricos: sua chácara (a Casa do Sol) com dezenas de cachorros, suas gravações de vozes de mortos, os textos ostensivamente pornográficos que escreveu…
Em 1986, após alcançar o cume da criação literária contemporânea (nas palavras de Jorge Coli, e que eu subscreveria sem hesitação), com Odes mínimas (1980) e A obscena Senhora D (1982), Hilda teve seu primeiro lançamento por uma editora de peso comercial (à época), a Brasiliense. Era o inédito Com os meus olhos de cão, reunido a textos mais antigos, e que no entanto passou em brancas nuvens. Nem dava para imaginar que, um quarto de século depois, haveria no mercado uma Coleção Hilda Hilst pela Globo (sob a responsabilidade de Alcir Pécora), esgotando sucessivas tiragens.
Nessa coleção, Com os meus olhos de cão ganhou um volume para si. Merecidamente. Trata-se de outro ponto alto da sua produção, cujo protagonista, Amós Keres, foi uma criança que fazia sempre perguntas incômodas, impressionado com a morte e a presença do sofrimento no mundo. Fortemente reprimido pelo pai autoritário, ele aos poucos calou em si essas perguntas, mergulhando no estudo da matemática, constituindo família, tornando-se professor universitário. Um dia, no alto de uma colina, ele tem uma visão epifânica e a partir daí ficarão esgarçadas todas as suas relações com um mundo mentiroso, sentimentalizado e complacente. Ele fica “alheio” nas aulas (os alunos se retiram e deixam recados jocosos na lousa), passa a sentir repulsa pela mulher e o filho, parece estar sempre com um sorriso desdenhoso (o que o mete em confusões) e a cabeça inclinada e seu único interlocutor é um amigo, Isaiah, que vive maritalmente com uma porca. Ao cabo, Amós decide voltar à casa da infância, com muito de rural ainda, e viver nos fundos do quintal, como um bicho, um ser desnudado, descobrindo também que o pai tinha os mesmos assomos de descortinamento do coração selvagem da vida: “que esforço para tentar não compreender, só assim se fica vivo, tentando não compreender”.
Não se pense que o texto é assim coeso, unívoco. Como sempre em Hilda Hilst, tudo vem numa forma agônica, emaranhada e intrincada, na qual todos os gêneros são misturados e a escatologia permeia todas as instâncias da condição humana (para se ter uma idéia, Amós Keres gostava de estudar matemática num puteiro), com a influência de Otto Rank & Ernest Becker de que vivemos sob o terror da morte e da nossa analidade “… Amós Keres. Inocente como um pequeno animal-criança olhando o Alto. Mas dizem que o Alto é o nada e é preciso olhar os pés. E o cu também. Com um espelho. Estou olhando. Impossível esquecer grotesco e condição”.
Plínio Marcos com Samuel Beckett. O leitor que se prepare, pois tem de estar disposto. Com essa obscena Senhora H, é tudo ou nada.
Esta senhora Hilst vai fundo no q temos de mais
escondido em pensamento. São os tais q gente
procura afastar.Homem q vive maritalmente c uma
porca ! Gostei do q vc escreveu mas não tenho
vontade de ler o q ela escreve.
Mt bom q ela tenha reconhecida a sua obra.
Maria Amelia
Comentário por Maria Amelia Savio — 08/02/2011 @ 11:04 |
É pena, cara Maria Amélia, que você não queira experimentar o texto de Hílda. É uma grande experiência. Mas obrigado pela gentileza do seu comentário. Bjs.
Comentário por alfredomonte — 09/02/2011 @ 12:15 |