[resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 11 de julho de 2000]
“Quando Shakespeare começa a ser Shakespeare? Sua primeira realização absoluta é a surpreendente Trabalhos de amor perdidos (1594)… Nenhum outro escritor jamais teve nada semelhante aos recursos de Shakespeare, tão abundantes em Trabalhos de amor perdidos que sentimos que se atingiram muitos dos limites da linguagem, de uma vez por todas. A grande originalidade de Shakespeare está na representação do personagem… ele muda todo o sentido do que é criar um homem com palavras, acrescenta à função da literatura de imaginação, que era instrução de como falar aos outros, a lição mais dominante, se bem que mais melancólica, da poesia: como falar a nós mesmos”.
Harold Bloom desenvolveu as afirmações acima (que podem ser encontradas no seu O cânone ocidental, de 1995, a respeito do qual mantenho uma visão ambígua, de admiração com reserva) num livro de 890 páginas: Shakespeare- A invenção do humano [traduzido por José Roberto O´Shea para a editora Objetiva], um dos lançamentos memoráveis deste ano.
Como se pode depreender do trecho citado, para Bloom a invenção do humano realizada por Shakespeare consiste na interiorização do personagem, no exercício de entreouvir-se, ele debatendo consigo mesmo o tempo todo. Se ele considera Trabalhos de amor perdidos a primeira peça indiscutível do bardo, o primeiro personagem a delinear a nossa invenção é o bastardo Faulconbridge de King John- Rei João (escrita mais ou menos na mesma época, nos últimos anos do século XVI): “Faulconbridge fala uma linguagem inteiramente individualizada, combina heroísmo e intensidade cômica e possui uma psique”. Estamos a caminho, portanto, de Hamlet, rei Lear, Iago, Macbeth…
Bloom fala muito de Hamlet, o maior personagem shakesperiano (o ensaio sobre a peça é o mais extenso do livro), mas também dá bastante espaço para Falstaff, das peças que compõem Henrique IV, e mostra um apreço especial por Rosalind, de Como gostais, que sempre imaginei como uma espécie de precursora das heroínas de Jane Austen.
Por que se interessar por um livro imenso sobre Shakespeare e ler tanto a respeito de um punhado de personagens fictícios? Pode-se argumentar que ele é o escritor-mor, pelo menos da cultura ocidental, pode-se afirmar que os argumentos de Bloom são consistentes e convincentes, ultrapassando sua passionalidade folclórica. E Shakespeare está na moda (quando, aliás, não está?): não estamos assistindo a uma novela das seis baseada em A megera domada? Não é evidente o clima sub-shakesperiano de Gladiador, muito mais acentuado do que a sua pseudo-ambientação romana? Richard Harris, que faz Marco Aurélio, parece pronto a encarnar o fantasma do pai de Hamlet ou o rei Lear nas charnecas, e Connie Nielsen perguntando se “Roma vale a vida de um homem bom” parece aspirar à condição de uma personagem de Júlio César, Coriolano ou Antonio e Cleópatra, mas tadinha dela…
Todavia, os melhores motivos para se ler A invenção do humano encontram-se no objetivo primário de Bloom e no seu estilo.
Quanto ao objetivo, ele queria transmitir ao leitor comum, apaixonadamente, a importância do autor de Hamlet (com o exagero discutível da tese da “invenção do humano”–só se for o humano europeu e anglófilo). Por isso, escreveu um ensaio sobre cada peça, o que é maravilhoso para quem quer ter um conhecimento mais sistemático, menos fragmentário do que é a obra de Shakespeare. A palavra “manual” é um pouco incômoda, sempre parece desvalorizar um livro, entretanto considero A invenção do humano um ótimo manual introdutório, apesar de haver alguns livros esplêndidos, num nível menos panorâmico, como Sobre Shakespeare, do maior dos críticos, Northrop Frye (com o qual Bloom polemiza ao longo do seu trabalho, contestando algumas interpretações), ou Falando sobre Shakespeare, de Bárbara Heliodora, só para dar dois exemplos.
Quanto ao estilo, o calhamaço de Bloom é uma delícia, ao mesmo tempo analisa a obra e dá um testemunho de paixão, de engajamento pessoal no que está analisando. É óbvio que a maior parte dos que escreveram na imprensa sobre ele e criticaram seu lado mais extravagante e vulnerável (o fato de Bloom bater de frente contra as principais teorias críticas contemporâneas, para ele frutos de uma “escola do ressentimento”) não tem o conhecimento, a erudição, a competência, e especialmente a verve do autor de O cânone ocidental (nem eu tampouco).
Alguns leitores podem reclamar da repetição excessiva de algumas frases-chaves, de algumas afirmações que atravessam o livro inteiro. É, não obstante, uma estratégia e não atrapalha a fluência do texto. Bloom, como bom professor que é, deve ter imaginado que num tal catatau seria bom lembrar ao leitor dos objetivos gerais. Afinal, são quase quarenta peças analisadas (felizmente, ele resume o enredo de cada uma para quem não as conhece, e quem pode dizer que conhece todas as peças de Shakespeare?). E, é claro, não são quaisquer peças. Só Hamlet, Rei Lear, Macbeth, Otelo, as maiores tragédias, já ocuparam livros inteiros cada uma.
A sensação de ler A invenção do humano é a de devorar um vasto e empolgante romance.
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