Pelo menos dois tremendos desapontamentos Anne Tyler teve de enfrentar nos últimos anos. Um, é o fato de ter sido omitida por Harold Bloom na lista final de O Cânone Ocidental, das leituras que valem a pena ser resgatadas da enxurrada anual de lançamentos; a outra: encarar as capas que os editores brasileiros colocam nas traduções dos seus romances.
Por exemplo, na tradução anterior de Escada dos Anos (editada pela Mandarim), um tal Paulo Rogério dos Santos concebeu uma mulher esvoaçante e diáfana diante de um mar douradíssimo. Lembrava aqueles comerciais do Leite Molico no qual as pessoas que o tomavam dançavam sem parar nos tetos de edifícios, como que acometidas de uma diarréia cerebral que as obrigava a um instantâneo ataque de comportamento debilóide. Pois a Record relançou o livro em nova tradução, até mais caprichada, nem por isso melhorou a embalagem agridoce com a qual insistem em sabotar um dos principais nomes da ficção contemporânea.
Agridoce? Nada mais amargo do que o saldo final de Escada dos Anos, onde a escritora que pôs Baltimore definitivamente no mapa da literatura mostra como construímos jaulas à nossa volta, mesmo que tentemos depurar nossa vida. É o que faz Delia, a protagonista. Casada, três filhos, primeiro flerta com a possibilidade de adultério com um rapaz que conhece num supermercado (o começo do livro é ótimo, uma prova do domínio absoluto de Tyler sobre o reino do diálogo). Quando está passando férias com a família, um dia sai pela praia afora, pega uma carona com um desconhecido e some, assumindo nova identidade na pequena cidade de Bay Borough, a princípio como secretária, depois como uma espécie de governanta. O período como secretária, quando Delia procura esvaziar sua antiga personalidade, seus hábitos e “sentimentos” adquiridos, é o grande momento do romance (que perde um pouco do pique a seguir): “Era curioso como a vida dava um jeito de erguer camadas de coisas em torno de uma pessoa. Ela já adquirira o abajur, porque a lâmpada no teto se mostrara inadequada para ler na cama; e guardava uma pilha de copos de papel e uma caixa de saquinhos de chá na prateleira do closet, usando até agora a água quente da torneira do banheiro; era óbvio que precisava comprar um segundo vestido. Ontem à noite, a primeira noite realmente quente do verão, ela pensara: preciso comprar um leque. Mas depois dissera a si mesma: pare com isso, pare enquanto ainda tem a vantagem”.
Logo Delia vai criar relacionamentos, repetir padrões emocionais, até o ponto em que Escada dos Anos equacionará sua nova vida com relação à antiga. Sempre com a atenção implacável, até obsessiva, de Tyler com os detalhes (roupas, objetos, gestos), atenção que supera até mesmo a maestria dos diálogos.
Talvez seja um fato incontestável que ela diluiu seu talento com cartas marcadas, já sem a força total dos romances dos anos 80 (Escada dos Anos é de 1995), que talvez fiquem como o grande período de sua obra, com títulos do calibre de A Passagem de Morgan (80), o extraordinário Refeição no Restaurante da Saudade (82), os também maravilhosos O Turista Acidental (85), que foi filmado lindamente por Lawrence Kasdan (com um William Hurt simplesmente genial), e Lições de Vida (88).
Às vezes sentimos falta também da densidade de uma Mary Gordon (Homens & Anjos) ou da voltagem emocional de uma Sue Miller (Por Amor), para lembrar contemporâneas suas. Os personagens de Anne Tyler são muito cheios de nhénhézices, tendo crises de angústia por ultrapassar um sinal vermelho (e isso foi ficando cada vez mais pronunciado nos livros mais recentes). Mas ela jamais cai no nível do mero entretenimento ou se torna uma auto-ajuda ficcional. Basta ler um trecho como o seguinte, para não haver dúvidas: “Lembro de uma fotografia que ele tirou quase no final de sua vida. Mostra sua mesa posta para a ceia de natal. O próprio Savage senta entre as cadeiras vazias, esperando por sua família. Sucessivas cadeiras, os talheres e louças na mesa, até um cadeirão de bebê, tudo arrumado. E não posso deixar de pensar, quando olho para essa foto, aposto que foi o melhor que houve naquele dia. Desse momento em diante, foi tudo por água abaixo. Os filhos e filhas chegaram, repreenderam suas crianças pelas maneiras à mesa, lembraram-se de incidentes desagradáveis ocorridos há quinze anos; e um bebê não parava de choramingar, deixando todo mundo com dor de cabeça. Só que naquele instante nada disso acontecera ainda, a mesa estava linda, uma mesa de sonho, o velho Savage sentia-se muito feliz…”
Por isso, mesmo não oferecendo mais surpresas, a autora consegue fazer de Escada dos Anos um romance em que o leitor descortina a negra realidade que existe por trás do palco de sentimentalismo no qual se desenrola a vida familiar. Os laços de ternura são também a corda onde a gente se enforca na própria emoção embargada.
(a resenha acima, publicada de forma condensada em 25 de outubro de 2008, é uma versão de outra publicada em 29 de julho de 1997, quando do lançamento da tradução editada pela Mandarim).
VER NO BLOG:
https://armonte.wordpress.com/2012/12/27/solidao-em-familia-a-moda-anne-tyler/
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