MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

30/07/2010

Minha amiga Elizabeth


(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 18 de março de 2006)

Devido à sua interpretação (que não considero nada de especial) na mais recente (e mais rasa) das numerosas versões de Orgulho e Preconceito, Keira Knightley recebeu indicação para todas as premiações de maior repercussão (Oscar, Globo de Ouro, SAG), embora tenha perdido sucessivamente para Reese Whiterspoon, a qual, por sua vez, estrelou a adaptação de outro magnífico romance oitocentista, A Feira das Vaidades [mas seus prêmios foram por outro papel, em Johnny e June]. Em conseqüência, a mais tradicional tradução (a de Lúcio Cardoso) do principal livro de Jane Austen ganhou nova edição. Esperemos que a obra-prima de Thackeray tenha a mesma sorte.

É provável que mesmo o aguado desempenho de Keira Knightley (em compensação, não se podia pedir um  mr. Darcy melhor que o de Matthew Macfadyen: a cena em que ele aparece ao amanhecer nas imediações da casa de Elizabeth e diz que a ama três vezes é um belo momento romântico do cinema atual) tenha chamado tanta atenção porque Elizabeth Bennet é uma das personagens mais carismáticas da história da ficção, como digna sucessora que é daquelas heroínas inteligentes, mordazes e apaixonadas de Shakespeare (Rosalind, de Como gostais, Pórcia, de O Mercador de Veneza, por exemplo). Como se sabe, ela pertence a uma família que tem muitas filhas (cinco), todas sem dote e cuja propriedade, com a morte do pai, deverá passar para um distante (e insuportável) parente masculino. Este, em certo ponto da narrativa, resolve pedir a mão de Elizabeth, mas ela está encantada com o forasteiro Wickham, desafeto de Mr. Darcy, melhor amigo de outro estranho ao lugar onde mora a família Bennet, Mr. Bingley, que se apaixona por Jane, irmã mais velha de Elizabeth (romance desaprovado pelo orgulhoso e preconceituoso Darcy). Aliás, Mr. Collins, o absurdo pretendente, toca na questão central da vida de mulheres como as Bennet: “A senhora deve levar em conta que apesar dos seus múltiplos atrativos, nada garante que outra proposta de casamento lhe seja feita algum dia. O seu dote infelizmente é tão pequeno que em todas as situações pesará contra a sua beleza e as suas louváveis qualificações.” Como se vê, uma situação muito parecida com a de outro livro de Austen (cuja versão cinematográfica, dirigida por Ang Lee, também foi sucesso), Razão e Sentimento. Em Orgulho e Preconceito tudo ganhou mais amplitude, principalmente o humor e a ironia.

Com implacável precisão e lucidez, ficamos conhecendo aquela sociedade em que cada um é prisioneiro de sua condição social e sexual, em que o mais rasteiro cálculo materialista e comodista dita as regras (e que talvez seja menos hipócrita que a nossa, regida da mesma forma, porém onde se pratica outro discurso), como mostra a melhor amiga de Elizabeth, Charlotte, ao aceitar Mr. Collins como marido: “Sem pensar muito nem nos homens nem no matrimônio, o casamento sempre fora o seu objetivo; era a única condição digna para uma moça bem-educada e de pouca fortuna e por mais incertas que fossem as perspectivas de trazer felicidade, ainda era a forma mais agradável de se preservar da necessidade”.

Mesmo assim, provavelmente os leitores apaixonados por Jane Austen, como eu,  nunca cansarão de reler Orgulho e Preconceito é por causa mesmo da mudança de sentimentos de Elizabeth com relação a Mr. Darcy, depois que reconhece o caráter dúbio e escorregadio de Wickham (que seduzirá a irmã dela),  percorrendo lentamente (em termos psicológicos, não narrativos) o arco que vai da antipatia ao amor. E isso através de diálogos ainda insuperados (a cena da declaração de amor dele é particularmente antológica). Nem a descoberta da protagonista de Emma de que ama Mr. Knightley é tão marcante.

Outro prazer adicional é o de retomar contato com um dos pais mais deliciosamente irônicos já criados, Mr. Bennet, sempre roubando a cena quando aparece e que, entretanto, não escapa à prodigiosa visão crítica da genial escritora inglesa: “Elizabeth, no entanto, nunca fora cega à impropriedade do comportamento do pai como marido. Aquilo sempre a fizera sofrer mas, respeitando as suas qualidades  e grata pelo seu tratamento afetuoso, esforçava-se por esquecer o que não podia fingir não ver e bania dos seus pensamentos aquela contínua quebra das obrigações e do decoro conjugal, expondo a esposa ao desprezo das próprias filhas.”  Todavia, como resistir a um personagem que, quando sua tola esposa diz,”Você se diverte em me aborrecer, não tem compaixão pelos meus pobres nervos”, responde: “Está enganada, minha cara. Tenho um alto respeito pelos seus nervos. São meus velhos amigos. Ouço-a mencioná-los com consideração há pelo menos vinte anos.”

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9 Comentários »

  1. prezado alfredo: a grande notícia é que a lpm está lançando em janeiro próximo uma nova tradução de OP, feita por celina portocarrero e com introdução de ivo barroso.
    merecido, não? a de lúcio é ótima, mas tem quase 70 anos (é de 1940); depois a pobre dama de steventon ganhou um plágio em nome de enrico corvisieri (best-seller) e outro em nome de jean melville (martin claret).
    veja aqui: http://janeausten.com.br/2009/12/capitulos-de-orgulho-e-preconceito-da-lpm/

    aliás, é o melhor blog sobre jane austen em língua portuguesa, uma mina de informações.

    abraço
    denise

    Comentário por denise bottmann — 04/12/2009 @ 18:20 | Responder

  2. Caro Alfredo,
    Mr. Bennet é maravilhoso e o relacionamento dele com Elizabeth é incomum entre pai e filha para a época. Lembro quando Lady Catherine disse ser impossível que um pai reclamasse a presença da filha (isto era coisa de mãe). O reverendo George Austen seria assim?

    Comentário por Raquel — 04/12/2009 @ 19:56 | Responder

    • Cara Raquel, talvez fosse o que Jane quisesse, um relacionamento assim, mas não tenho conhecimento de que fosse efetivamente assim. Você notou que alguns dos cavalheiros dos livros dela, como Mr. Knightley, de Emma, e o coronel que casa com Marianne, são bem paternos?

      Obrigado pelo seu comentário.

      Comentário por alfredomonte — 04/12/2009 @ 20:04 | Responder

  3. […] que nunca se cansará de reler Orgulho e preconceito. O texto completo da citação acima no post  “Minha amiga Elizabeth“, no Blog do Alfredo […]

    Pingback por | Um amigo de Elizabeth Bennet | Jane Austen em português — 06/12/2009 @ 23:15 | Responder

  4. Caro Alfredo,
    eu quero acreditar que Jane e o pai eram amigos.
    Mr. Knightley é o mais paternal de todos e costumo dizer que o único pecado do cavalheiro é ter se casado com Emma!
    Fiz uma pequena citação de seu texto no meu Jane pois um amigo de Lizzy é sempre bem-vindo!
    abs, raquel

    Comentário por Raquel — 06/12/2009 @ 23:24 | Responder

  5. Reese Whiterspoon não ganhou de Keira Knightley por sua atuação em “Feira das Vaidades” e sim por sua interpretação em “Johnny e June”!

    Comentário por Eduardo — 07/12/2009 @ 14:16 | Responder

    • sim, eu sei, por “Johnny & June”, o paralelo que eu quis fazer foi apenas por ambas terem interpretado personagens oitocentistas em produções muito próximas. Abraço, Alfredo

      Comentário por alfredomonte — 07/12/2009 @ 14:24 | Responder

  6. Ah, sim. Entendi. Mas o texto está dando a entender que Keira concorria com “Orgulho e Preconceito” e Reese com “Feira das Vaidades”. Obrigado por responder. Abraço.

    Comentário por Eduardo — 07/12/2009 @ 14:28 | Responder

  7. Bom dia!

    No que diz respeito aos filmes, nada como a série “Orgulho e preconceito” – realizada pela BBC com elenco de primeira – e que já está a venda na livraria cultura!

    Abraços!

    Comentário por Cristina — 26/04/2010 @ 14:42 | Responder


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