MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

23/07/2010

O tédio e o hábito tocaiando uma obra: as inúmeras voltas do parafuso moraviano


Em 1960, Alberto Moravia (1907-1990) publicou uma de suas obras-primas, talvez mesmo o seu maior livro, La Noia (no Brasil, Vidas Vazias), no qual, através de Dino, o narrador, apresentava sua preocupação em desmascarar o mundo burguês no seu trinômio sexo-dinheiro-posse, recorrente em tantos dos títulos do autor italiano, inclusive no último, A mulher leopardo (La Donna leopardo, traduzido por Mário Fondelli e editado pela Bertrand Brasil), lançado após sua morte. E que deveria se chamar “O mofo”. Há assuntos e estilos os quais, se o autor não lhes der um remelexo, não fizer um ziriguidum, perdem sua capacidade crítico-provocativa e passam a ser eles mesmos vazios e tediosos.

      A mulher leopardo nos conta como o protagonista, Lorenzo, orgulhoso de sua bela mulher, Nora, a apresenta a Colli, um dos acionistas do jornal para o qual trabalha, e que o convidara a uma viagem ao Gabão, na África. Nora e Colli simpatizam até demais um com o outro e Lorenzo atormenta-se com a suspeita de que eles tenham iniciado um caso. Ada, a esposa de Colli, contribui para a desconfiança com seu comportamento dúbio, e ela e Lorenzo agem como espelho subalterno do outro casal, na tentativa de reproduzir tudo aquilo que eles supõem que o outro, mais fascinante, faça.

      Talvez quem nunca tenha lido Moravia, ou Durrell ou Kundera, entre outros, ache instigante esse vaudeville, porém a própria narrativa parece afetada pelo vazio e alienação das personagens. O aspecto potencialmente mais rico e sedutor da história, que seria o impacto da África sobre os casais (e as reflexões de Colli sobre o papel do homem nesse tipo de paisagem são momentos felizes de A mulher leopardo) é abafado pela atmosfera “huis clos” dessa trama déja vu. O leitor se sente tentado a sair correndo antes que o acúmulo de bocejos o leve ao sono dos justos e pegar O céu que nos protege, de Paul Bowles (ou o notável filme de Bertolucci baseado nele), possivelmente a palavra definitiva em se tratando de mostrar como os problemas burgueses ficam mais fúteis e frágeis diante de uma paisagem física e cultural basicamente indiferente ao mero indivíduo.

   O bom de A mulher leopardo, fruto sem dúvida do tanto que Moravia debruçou-se sobre o assunto, é mostrar sem rebuços a vulgaridade das relações sexuais estabelecidas. Ao invés de tentar injetar “requinte” ou um toque trágico ao erotismo burguês, como acontece a maior parte das vezes, até com gente do cacife de um Louis Malle (no seu lastimável Perdas e Danos), para não falar nos Walter Hugo Khouri da vida, Moravia escancara o materialismo e o utilitarismo e, sob as elucubrações dialéticas de Lorenzo a respeito do poder de Colli e da felinidade de sua esposa, aparece nitidamente o orgulho ferido do macho preterido em favor de outro com maiores atrativos. Ele se irmana, assim,  a outros heróis de Moravia que tentam transformar o ser amado em objeto de estudo e procuram iludir sua perda com uma lógica cerrada. Esse eco de uma grande obra ajuda um pouco a transformar essa Mulher leopardo se não numa criação do calibre de Vidas vazias, As ambições erradas, Os indiferentes, A romana ou 1934, para não falar nos maravilhosos Contos romanos, pelo menos num produto digno de um grande mestre que se repetiu demais.

(resenha publicada, com ligeiras alterações, em 28 de junho de 1994).

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