Resenha publicada em ” A Tribuna”, de Santos, de forma ligeiramente condensada em 10 de maio de 2008
Poemas e Canções alcança o centenário agora em 2008 como obra difícil de encontrar: para conhecer a produção de Vicente de Carvalho (1866-1924), o leitor comum tem como opção acessível a seleção feita por Cláudio Murilo Leal para a Global, onde, entre versos ligeiros e “graciosos”, metrificados com uma “naturalidade” que, por um lado, pressagia a miraculosa obra de Manuel Bandeira e sua inacreditável simplicidade em meio a uma lírica afeita ao preciosismo lexical e a uma sintaxe arrevezada e, por outro, parece “fácil”, preguiçosa demais, deparamos com os seguintes trechos, pertencentes a De manhã:
“… Ver é o supremo bem.
Surpreendo-me a cismar
Se a alma será, talvez, uma função do olhar…
É com os olhos que eu sinto, e compreendo –ou suponho.
//
A vida é para mim como a névoa de um sonho
—Névoa confusa de um sonho material
A que somente o olhar, de certo modo, e mal,
Dá, com as formas e a cor, expressão e sentido…
//
…Sei que um beijo de amante é uma bem doce coisa:
Mas no encanto do beijo esfaimado de amor
Há muito da visão rósea de um lábio em flor.
Ao contato da mão, ou num lírio, ou num verme,
É a sugestão do olhar que domina a epiderme…
//
…No que o ouvido escuta —é o olhar que traduz:
Para a imaginação do homem órfão da luz
Que exprimiria o som —canto, sussurro, grito,
Ribombo de trovão rolando no infinito…
//
…Nunca tivesse o olhar humano convivido
Com a natureza; nunca houvesse o homem subido,
Pelos olhos, suave escada de Jacó,
Da Terra e de si mesmo, isto é, de lama e pó,
Para a resplandecência astral e inacessível
Do céu…
//
…Desconheces a luz que revela a beleza,
A luz, que espiritualiza a Natureza,
Que, num foco fugaz de espuma sem valor,
Cria a mais deslumbrante apoteose da cor;
Não aprendesse, amando a luz fecunda, o forte
Horror da sombra, horror do vácuo, horror da morte.
//
Encerrado em si mesmo e chumbado no chão,
Insulado na funda, imensa solidão
Que em derredor do cego a cegueira dilata;
O homem, órfão da luz, na Terra estreita e chata,
Quase só conhecendo o Universo —através
Do pedaço de solo em que pousasse os pés,
//
Dentro da escuridão de su´alma vazia
Que humilde sonho de molusco sonharia?”
–
Esqueçamos os banais “beijo de amante”, “esfaimado de amor” e “visão rósea de um lábio em flor”. São poluentes agregados espuriamente à espuma das vagas dessa surpreendente e lúcida poética do olhar. É uma pena que esse exercício seja tão raro numa obra em que o dinamismo do verso e da rítmica poderia obedecer a um critério fenomenológico menos atrelado àquela “sensibilidade” que se espera do poeta, evitando a pobreza das seguintes anotações sobre a natureza:
“Vai branca e fugidia,
A nuvem pelo ar:
Roça de leve a lua,
Embebe-se em luar
//
E toda resplandece
No brilho do luar,
Mas pouco a pouco passa
E perde-se no ar…”
–
E vai ficando pior, pelo entrecho sentimental:
“Minha alma na tua alma
—Nuvem que trouxe o vento—
Passou por um instante,
Roçou por um momento…
//
…Eu refleti apenas
Um brilho que era teu;
Passei, e tu ficaste,
Ficou contigo o céu.”
–
E as célebres Cantigas Praianas vão na mesma toada de lirismo trivial e fácil, “natural”, com uma “natureza” que parece feita de palavras cristalizadas em puros rochedos de clichês:
“Ouves acaso quando entardece
Vago murmúrio que vem do mar,
Vago murmúrio que mais parece
Voz de uma prece
Morrendo no ar?
//
Beijando a areia, batendo as fráguas,
Choram as ondas; choram em vão:
O inútil choro das tristes águas
Enche de mágoas
A solidão…”
Vicente de Carvalho foi vítima da sua época, aquele período indeterminado, quase invertebrado, entre o Parnasianismo-Simbolismo e o Modernismo, etiquetado como o Pré-Modernismo. Ele escapou dos piores defeitos que assolam até a (grande) poesia de Olavo Bilac, aquele pedantismo horroroso, aqueles temas clássicos coligidos com informações de almanaque; como Afonso Schmidt, porém, nunca logrou uma voz poética inteiramente sua e parece ter se debatido entre destroços de tradições poéticas e vagas correntes intuitivas de uma “outra poesia”, que por vezes perpassa o seu lirismo e o faz surfar sobre águas menos rasas. Ele prova isso nos melhores trechos do seu A arte de amar, nas anotações sobre a natureza com uma clivagem mais irreverente, como nas Fantasias do luar (“O conjunto descosido/Da paisagem// A apagada fantasia/ Do colorido—parece /De um pintor que padecesse/ De miopia// Tudo, tudo quanto existe/ Extravaga, e se afigura/ Tomado de uma loucura/ Mansa e triste.”) ou no conceito freudiano de felicidade que aparece em Velho Tema:
“Essa felicidade que supomos
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,
//
Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos”
–
E dessa forma o melhor Vicente de Carvalho escapa ao moribundo “lirismo de crepúsculo” que inunda versos como:
“Tudo amortece; a tudo invade
Uma fadiga, um desconforto…
Como a infeliz serenidade
Do embaciado olhar de um morto.”
Maravilhoso trabalho. Parabéns !
Comentário por Nicéas Romeo Zanchett — 09/08/2010 @ 16:21 |
Muito obrigado. Abraço, Alfredo
Comentário por alfredomonte — 09/08/2010 @ 20:07 |