MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

14/04/2009

leitura em progresso de “O Capital”(atualizado em 03.05.09)

Filed under: Livro que estou lendo — alfredomonte @ 18:09
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03.05.09-  Marx, geralmente, é meio parco de elogios e por isso, quando ele fala bem de alguém, enfatizando sua “costumeira maestria”, é para se prestar atenção. É o caso de William Petty, que citarei agora, usando uma nota de rodapé no finalzinho da primeira parte de O Capital, “Mercadoria e Dinheiro” (é mais pelo estilo do que pela reflexão em si): “O dinheiro é a gordura do organismo político, e, por isso, demais, dificulta sua mobilidade, e,de menos, torna-o doente… Do mesmo modo que a gordura flexibiliza os movimentos dos músculos, alimenta na falta de aliemntos, preenche cavidades irregulares e aformoseia o corpo, o dinheiro torna mais rápidos os movimentos do Estado, traz víveres do Exterior quando há carência no país, salda contas… e embeleza tudo, embora mais especialmente aos indivíduos que o possuem em abundância”.

   Terminei essa primeira parte, mas não avancei muito nos últimos dias porque tive (como qualquer professor conhece bem essa rotina) de fechar notas bimestrais; e também porque embarquei numa leitura paralela (de um livro denso e importante, A tragédia shakesperiana, clássico de A.C. Bradley). Para compensar, cito um pouco dos planos de Marx quanto ao projeto do seu livro, em carta para seu amigo Kugelman em 13 de outubro de 1866 (um ano antes do lançamento do  primeiro volume): “Minhas condições (interrupções físicas e externas sem cessar) geram a necessidade de que o primeiro volume seja publicado separadamente, e não os dois volumes juntos, como pretendia fazer antes. Serão provavelmente três volumes, afinal. Todo o trabalho está dividido como se segue:

Livro I- O processo de produção do capital

Livro II- O processo de circulação do capital

Livro III- Forma do processo como um todo

Livro IV- Contribuição à história da teoria econômica

     O primeiro volume contém os primeiros dois livros… Considerei necessário começar o primeiro livro ab ovo, ou seja, fazer em um capítulo, sobre as mercadorias e a moeda… julgo isto necessário não apenas em benefício da inteireza da obra, mas também porque mesmo aqueles que tem boa cabeça não compreendem o assunto muito corretamente, e alguma coisa deve estar faltando à primeira apresentação, particularmente na análise das mercadorias” etc (cf. O 18 Brumário & Cartas a Kugelman, ed. Paz & Terra, 1969, pág.184).

28.04.09- Na seção sobre o “entesouramento”, o estilo de Marx está no auge: “Já nos primórdios do desenvolvimento da circulação das mercadorias evoluiu a necessidade e a paixão de reter o produto da primeira metamorfose [Marx chama de metamorfose o trajeto M-D-M, mercadoria-dinheiro-mercadoria, venda de mercadoria-aquisição de dinheiro-compra de outra mercadoria; a primeira metamorfose é o primeiro movimento- M-D; a segunda metamorfose é o segundo movimento – D-M], a forma transfigurada da mercadoria, a crisálida áurea. Vende-se a mercadoria não para comprar mercadoria, mas para substituir a forma mercadoria  pela forma dinheiro. A transformação passa a ter fim em si mesma, ao invés de servir como meio da circulação das coisas. Impede-se a imagem transformada da mercadoria de funcionar como forma absolutamente alienável, de caráer fugaz. O dinheiro petrifica-se em tesouro; o vendedor de mercadorias, em entesourador” (p. 157, edição citada, grifos meus). Mais  adiante: “Não revelando o dinheiro aquilo que nele se transforma, converte-se tudo em dinheiro, mercadoria ou não. Tudo se pode vender e comprar. A circulação se torna a grande retorta social a que se lança tudo, para ser devolvido sob a forma de dinheiro” (p.158). E mais: “Mas o próprio dinheiro é mercadoria, um objeto externo, suscetível de tornar-se propriedade privada de qualquer indivíduo. Assim, o poder social torna-se o poder privado dos particulares. A socidade antiga denuncia o dinheiro como elemento corrosivo da ordem econômica e moral [e aqui temos, em rodapé, citações majestosas do “Timão de Atenas”, de Shakespeare, e da “Antígona”, de Sófocles, deplorando o uso corrupto e generalizado que a humanidade faz do ouro como escala de valores]. A sociedade moderna… saúda no ouro o Santo Graal, a resplandecente encarnação do princípio mais autêntico da sua vida” (p.159). E para terminar: “Do ponto de vista a qualidade, ou da forma, o dinheiro não conhece froteiras: é o representante universal da riqueza material, pois é conversível em qualquer mercadoria Mas qualquer porção real de dinheiro é quantitativamente limitada, sendo meio de compra de eficácia restrita. Essa contradição entre a limitação quantitativa e o aspecto qualitativo sem limites impulsiona permanentemente o entesourador para o trabalho de Sísifo a acumulação. Conduz-se ele como o conquistador que vê em cada país conquistado apenas uma nova fronteira a ser ultrapassada (…) O entesourador sacrifica à idolatria do ouro os prazeres da carne. Esposa o evangelho da abstenção. Mas só pode tirar em dinheiro da circulação o que lhe dá em mercadoria. Quanto  mais profuz, mais pode vender. Diligência, poupança e avareza são suas virtudes cardeais:  vender muito, comprar pouco, a suma da economia política” (pp. 159-160, grifos meus).

25/04/09

Um ex-Primeiro Ministro britânico (o nada ilustre Harold Wilson) afirmou nunca ter conseguido ler O Capital. Sua explicação é maravilhosa: “Não fui além da página 2, quase completamente tomada por uma nota de rodapé. Achei que uma página de nota para duas frases era demais” (obtive essa informação do outro livro de Francis Wheen , além da biografia que ele escreveu sobre Marx: O Capital de Marx- uma biografia).

    Bem, eu adoro notas de rodapé… E a leitura que estou fazendo do livro me mostrou que há duas experiências de leitura paralelas de O Capital: a do texto principal e a das notas. E há uma terceira até: a da tessitura de referências, e as provocações e brincadeiras decorrentes, mesmo no texto principal. Com relação a esse último aspecto, veja-se o seguinte trecho: “O preço expressa o valor de uma mercadoria (por exemplo, uma tonelada de ferro), tomando uma quantidade determinada do equivalente (por exemplo, uma onça de ouro) diretamente permutável por essa mercadoria (o ferro). Mas o preço não assegura, com isso, a permutabilidade direta do ferro pelo ouro. Para atuar praticamente como valor-de-troca, tem a mercadoria de desprender-se de seu corpo natural, de transformar-se de  ouro idealizado em ouro real, mesmo quando transubstanciar-se lhe seja mais difícil do que à Idéia hegeliana a passagem da Necessidade para a Liberdade, a uma lagosta o desprender-se de sua casca ou a São Jerônimo o despojar-se do velho Adão [aqui se encaixa uma nota de rodapé deliciosa]. Ao lado de sua contextura real, pode a mercadoria, o ferro, por exemplo, possuir um preço, a forma ideal do valor ou a figura idealizada do ouro, mas, realmente, não pode ser, ao mesmo tempo, ferro e ouro [como se vê, Marx não deixa de ser um filósofo alemão a torcer e retorcer os conceitos até nos deixar com a sensação de que todo o universo é uma irrealidade, uma viagem de ácido na cabeça de um filósofo alemão, ou mais prosaicamente, de que “só é possível filosofar em alemão”]. Para lhe dar um preço, basta igualá-la a ouro idealizado. A fim de prestar a seu dono o serviço de equivalente geral, tem ela de ser substituída por ouro. Se o dono do ferro se confrontasse com o proprietário de uma MERCADORIA PROFANA e chamasse a atenção para o preço do ferro como se já fosse dinheiro, o  proprietário lhe retrucaria com aquela resposta que São Pedro, no céu, dá a Dante, ao acabar este de recitar o Credo:

                       Cuidadosamente examinados

                      Já estão o peso e a lei dessa moeda.

                      Mas, dize-me, tens dela em tua bolsa?

A forma preço implica a alienabilidade das mercadorias contra o dinheiro e a necessidade dessa alienação por dinheiro. Por outro lado, o ouro funciona como medida ideal do valor apenas porque já operava, no processo de troca, como mercadoria-dinheiro. Atrás da mensuração ideal dos valores, espreita o metal sonante” (trecho retirado das páginas 130-131 do primeiro volume de O Capital, traduzido por Reginaldo Sant´Anna e publicado pela Civilização Brasileira – os trechos que aparecem grifados o foram por mim].

    Voltando ao rodapé: Machado de Assis iria amar uma notinha swiftiana: Marx está comentando no texto principal o processo primitivo de troca e as transformações que o complexificaram. Na nota de rodapé, começa comentando costumes de selvagens que “usam a língua de outro modo” que não seja para a comunicação verbal: (contrapondo-os ao produtor burguês de mercadorias que põe uma etiqueta nela e “anuncia seu preço ao mundo exterior): uns lambem o artigo, como os habitantes da costa ocidental da baía de Baffin, ou os esquimós. Nesse ritmo, prossegue “inocente e doutamente”: “Se a língua, no Norte, serve de órgão de apropriação, não admira que, no Sul, se considere a barriga o órgão da riqueza, avaliando os cafres a fortuna de uma pessoa pelo volume de pança.  Os cafres são muito vivos, e a melhor prova disso é a coincidência de dois fatos: o relatório oficial britânico de saúde pública [como alguém pode tirar anedotas tão bem humoradas de uma leitura árida dessas; valendo-me da própria discussão econômica do texto principal, afirmo que Marx é um alquimistra que transubstancia o cobre ou o ferro das leituras áridas em ouro anedótico]de 1864 deplora a carência de substâncias gordurosas em grande parte da classe trabalhadora, e, no mesmo ano, um certo Dr. Harvey….ganha uma fortuna com receitas que, a acreditarmos nas suas promessas, extrairiam os excessos de banha da burguesia e da aristocracia” [ págs.122-123 da edição citada].

   

17.04.09- Marx não gostava muito de se separar dos seus manuscritos, tanto que “embromava” e complicava ao máximo sua finalização para publicação (cf. Jacques Attali, Marx ou O espírito do mundo). Talvez ele tivesse toda a razão. Afinal, ao invés de respeiar sua integridade como pensador, o seu radicalismo, vou recortar o “meu Marx”, usar seus textos ao meu talante. Em tempo: com relação às biografias de Marx, nada posso dizer contra as duas volumosas que li (além de Attali, tem a de Francis Wheen, Karl Marx), ambas me foram muito úteis. Não sei se é por que as li, e se isso é um pré-requisito para melhor apreciar, mas confesso que melhor do que elas é o livro de Leandro Konder sobre a vida e a obra de Marx: tudo ali é preciso, dá idéia de uma vivência tão intensa que mesmo sendo sumários os esboços biográficos e as sínteses das idéias de cada obra, creio que é a melhor coisa que já li (até agora) sobre o pensamento de Marx, e olhe que acho um monumento o livro de Aron.

16.04. 09- Há um paralelo evidente entre o jovem Marx e o jovem Proust, uma forma de “angústia da influência”: a necessidade de liquidar as contas co antecessores, um “agon” competitivo e paródico. Marx tenta liquidar em si Hegel, os jovens hegelianos, seus textos de juventude são quase todos “contra”  alguém. O mais próximo que chega de uma gentileza é com relação a Feuerbach, tomado algo assim como um “elo perdido” entre o idealismo opressivo de Hegel e o materialismo dialético marxista; paralelamente, Proust acerta as contas com sua dívida & dubiedade com relação a Flaubert, acaba com outros escritores com a mesma ambição  “fluvial” que a sua (como Romain Rolland, autor de Jean Christophe) e tem Ruskin como o  “elo perdido”. Só ainda não coloquei Anatole France e sobretudo Bergson nessa constelação de paralelos, de uma forma que não fique forçada. De qualquer forma, o que eu quero enfatizar é que Marx e Proust  já praticam o que chamamos hoje de “intertextualidade”: são textos sempre a partir de outros, parece que eles tinham de “limpar o terreno” antes de encetarem sua própria obra.

14.04.09. Acabei de ler  O marxismo de Marx, de Raymond Aron. Nele podemos acompanhar, como fez Renato Mezan no título e no conteúdo do seu belo livro sobre Freud, a “trama dos conceitos” marxistas. E dela tirei uma idéia, pela qual sempre ficarei grato a Aron, de estudar paralelamente a obra de Marx e Proust. Por quê? Porque ambos tentaram escrever um único livro na vida, perseguiram o ideal do livro total, da escritura totalizante e que justamente por esse ambição foram projetos que ficaram fadados ao inacabamento  ou à publicação póstuma sem o controle autoral. O capital e Em busca do tempo perdido como exemplos da modernidade sólida (na qual há o perigo de tudo se desmanchar no ar), até no fôlego de obras que levam décadas para serem tecidas. Mas antes disso, desses Lisos do Sussuarão, desses Grandes Sertões, as veredas: as obras que, em retrospecto, “preparam” os grandes projetos. Uma leitura não-informada das obras da juventude de Marx (não-informada já que não sou filósofo, sociólogo, economista, cientista político) e uma leitura das obras da juventude de Proust. Os Manuscritos de 1844 fazendo par com Jean Santeuil, a Ideologia Alemã com Contra Sainte Beuve, o Manifesto Comunista com Os prazeres e os dias. Dá samba? Vou informando a vocês no caminho (14/04/09).

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