MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

30/09/2014

Destaque do Blog: OS LUMINARES, de Eleanor Catton


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(uma versão da resenha abaixo foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 30 de setembro de 2014)

A riqueza e a complexidade de veios e minérios misturados na ambiciosa composição das quase 900 páginas de Os Luminares [The Luminaires], um dos romances mais prestigiados dos últimos anos, vencedor do Booker Prize 2013, servem para esconder duas pepitas básicas (e que podem ser de valor incalculável ou irrisórias) do mundo do folhetim: o interesse pelo destino de um casal que se forma e se desencontra, ao longo da narrativa (no caso, Emery Staines e Anne Wetherell); o paradeiro de uma fortuna (milhares de libras em ouro).

Emery é um indivíduo solar (mesmo em suas desditas posteriores) e sua fama, em Hokitika, povoado mineiro na Nova Zelândia dos anos 1860, é a de sortudo; em contrapartida, a sina de Anne, prostituição e dependência do ópio, é lunar e quase aziaga: quando o leitor a conhece, ela está toda enleada com a repercussão de uma suposta tentativa de suicídio.

O ouro, por sua vez, passa por várias mãos, assume várias formas (costurado em vestidos, trazendo a marca de um local de prospecção improdutivo, o Aurora), desde que os vilões da trama, Thomas Carver e Lydia Wells (a qual se valerá de muitos avatares no relato: cafetina, dona de antro de jogo, viúva, médium) puseram em prática seus planos de roubá-lo e contrabandeá-lo, envolvendo não apenas o jovem par amoroso, como também o marido de Lydia, Crosbie, e seu meio-irmão, o eminente político Alistair Lauderback.

Comentando a origem de O Nome da Rosa, Umberto Eco conta que tinha a ideia de matar um monge, cuja consequência foi a criação de um mundo ficcional, e de uma linguagem, que propiciassem sua realização. Eleanor Catton (atualmente, com 29 anos) fabulou e urdiu intrigas e molduras narrativas para unir — apesar das impossibilidades e eclipses — o sol e a lua, mostrando os estragos que um capital-fetiche pode acarretar.

Para tanto, ela criou uma estrutura narrativa que se fundamenta na astrologia: doze personagens se reúnem e confabulam, com todos os prós e contras, numa espécie de assembleia astral na qual os veios da história se encontrem; cada um deles representa um signo do zodíaco e todos  participaram de eventos ligados ao casal protagonista. Além deles, temos os planetas regentes: assim, por exemplo, Carver e Lydia representarão Marte e Vênus, o carcereiro-chefe de Hokitika, Sheperd, Saturno, e o candidato Lauderback, Júpiter.

Tudo isso num universo de faroeste, num fim de mundo, onde  as pessoas se reinventam (como o jovem aristocrata Walter Moody, Mercúrio, que vem tentar uma vida como aventureiro do ouro, e é quem dá início à história, ao entrar incautamente no salão no qual os doze personagens zodiacais se reuniram), numa aurora de “civilização” (quer dizer, brancos explorando e espoliando povos nativos, como os maoris, ou estrangeiros, como os chineses), com os conflitos e impasses gerados, entre costumes e códigos antigos e a “lei” instituída, tal como podemos entrever numa curta passagem:

 Quando dois códigos de justiça estão à disposição simultaneamente, um homem sempre utilizará um para obstruir o outro (…) Não penso que a lei é deficiente; meramente pretendo sintetizar o que ocorre quando o selvagem encontra o civilizado (…)

__ Entendo o seu ponto; o perigo é essa penumbra entre o mundo antigo e o novo…”

    Qual é o sentido, em pleno século XXI, de um romance enorme que, além de tudo, se apropria da forma de narrar dos romances vitorianos à Dickens[1]? Será que o gênero não estaria mesmo moribundo, aos praticantes restando apenas exercícios estilizados, a ser degustados por desocupados (privilegiados quanto ao tempo para se ocupar deles)?[2] Correndo o sério risco de me ver incluído entre os últimos, devo dizer que acho perfeitamente natural construir todo um vasto empreendimento ficcional para matar um monge e unir um casal de antípodas (“E há corpos celestes e corpos terrestres, mas uma é a glória dos celestes e outra a dos terrestres. Uma é a glória do sol, e outra a glória da lua, e outra a glória das estrelas; porque uma estrela difere em glória de outra estrela”– Cor. 15. 40, 41[3]). . E, mais ainda, acho que essa é uma vocação do romance. Perder-se por dias e semanas numa leitura como Os Luminares é uma experiência cognitiva realmente privilegiada: ao viver nesse mundo autônomo, embora conectado ao nosso, temos uma enciclopédia de paixões humanas, para a qual contribuem os princípios jurídicos (largamente explorados no relato), a descrição topográfica, os detalhes históricos, e todos os elementos contingentes, o “acidental” que tanto valor adquire num mapa existencial tão precário quanto o de cada indivíduo.

Nesse quesito, o livro de Eleanor Catton já seria um feito e tanto e, sim, aquelas pepitas adquirem aqui valor incalculável. Ainda é pouco: se ela é capaz de esconjurar todos os clichês da falta de tempo e de relevância para a criação de um romance completo e pródigo de fabulação folhetinesca (ainda utilizando uma linguagem de apuro quase sobrenatural[4]—que a tradução de Fábio Bonillo preserva com felicidade—malgrado inúmeros erros de revisão), mais admirável ainda é sua ardilosidade, digna de Lydia Wells.

Pois só quem não ler Os Luminares até o fim, poderá considerá-lo tão somente um romance à antiga. As três primeiras partes, mais extensas, é que se encarregam dessa “atmosfera”. As nove restantes recuam no passado, desvelando os fundamentos de todos os imbróglios já explorados em forma de quebra-cabeças.  E aí Catton descortina um arquipélago de cenas rápidas e quase truncadas, as quais vão adquirindo uma conotação cada vez mais irônica (por isso, o resumo, bem no feitio dos romances antigos, que serve de introito, mostra-se mais rico de acontecimentos e considerações do que aquilo efetivamente mostrado em cada capítulo[5]) de lampejos do porvir[6]. Então, não se apressem os anunciadores dos necrológicos romanescos em realçar o lado anacrônico de um livro que é, também, um vigoroso e malicioso mostruário da dissolução da “coesão” oitocentista do gênero.

Afirmei que o cenário do romance evocava o faroeste. Os Luminares me faz lembrar de Sergio Leone que, em Era uma vez no Oeste, valendo-se dos seus elementos primordiais, orquestrava uma grandiosa reencenação elegíaca desse universo. E o casal Emery (sol) e Anne (lua), cuja união talvez só possa ser possível na ilusória paz do ópio, traz à mente outro título do mestre italiano, Era uma vez na América, onde toda a realidade da história perdia, no final, seu “peso” no sonho opiáceo. Tenho para mim que o esplêndido romance de Eleanor Catton ganhará, com o tempo, o mesmo status de clássico desses filmes de Sergio Leone. Fumaça e minério mesclados. Apoteose e elegia de um gênero.

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TRECHO SELECIONADO

    “__ Lauderback assim o disse, exatamente—disse Moody. Ele balançou a cabeça.—Fico pensando se devo acreditar nas intenções do senhor Lauderback ao citar o nome desta jazida tão casualmente ao senhor Balfour esta manhã.

__ O que quer dizer com isto, senhor Moody?

__Não confia nele, em Lauderback?

__Seria muito pouco lógico desconfiar do senhor Lauderback—disse Moody—, visto que nunca na vida encontrei o homem. Estou muito ciente do fato de que os acontecimentos pertinentes dessa história estão sendo transmitidos de segunda mão, até, em alguns casos, de terceira mão. Tomo como exemplo a menção à jazida Dunstan. Francis Carver aparentemente mencionou o nome dessa jazida ao senhor Lauderback, que por sua vez narrou ao senhor Balfour, que por sua vez retransmitiu sua conversa a mim, hoje à noite! Todos vocês hão de convir que eu seria um tolo em tomar como verdadeiras as palavras do senhor Balfour.

     Mas Moody subestimara sua plateia ao questionar tópico tão delicado quanto a ´verdade´. Houve uma explosão de indignação ao redor da sala.

__ Quê? Não confia em um homem que lhe contou a própria história?

__ Posso asseverar que isso é verdade, senhor Moody!

__ Que mais ele poderia lhe dizer, salvo aquilo que contaram a ele?

    Moody foi tomado de surpresa.

__ Não creio que qualquer parte de sua história tenha sido adulterada ou omitida—ele replicou, dessa vez com mais cuidado. Olhou de rosto em rosto.—Queria apenas observar que não de pode nunca assumir como própria a verdade de outro homem.

__ Por que não?—Essa pergunta imediatamente ecoou de toda parte.

    Moody fez uma pausa por um instante, refletindo.

__ Em um tribunal—disse ele finalmente—, uma testemunha jura dizer a verdade, ou seja, sua própria verdade. Ela concorda com dois parâmetros. Seu depoimento deve conter toda a verdade, e esse depoimento não deve conter nada além da verdade. Apenas o segundo desses parâmetros é um limite real. O primeiro, é claro, é grandemente uma questão de discrição. Quando dizemos ´toda a verdade´, dizemos, mais especificamente, todos os fatos e impressões que são pertinentes ao assunto em questão. Tudo que não é pertinente não é apenas irrelevante, é também, em muitos casos, intencionalmente enganador. Senhores—disse ele, embora senha abordagem coletiva lhe houvesse saído esquisita, considerando a companhia diversificada  que ele tinha na sala—, eu defendo que não há verdades totais, e sim apenas verdades pertinentes, e a pertinência, hão de convir,  é sempre uma questão de perspectiva. Não creio que nenhum de vocês haja perjurado de alguma maneira esta noite. Eu acredito que me deram a verdade, e nada além da verdade. Mas suas perspectivas são muitas, e hão de me perdoar se eu não tomar por integral a sua narrativa”.

Eleanor+Catton+Eleanor+Catton+Wins+Man+Booker+uin2nHI2fN9lIllustration by Clifford Harper/Agraphia.co.uk

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NOTAS

[1] Também com elementos de Victor Hugo (algumas cenas entre Anna e o funcionário da Justiça Aubert Gascoigne), avançando para o tipo de romance desenvolvido por George Eliot (aliás, uma  autora que poderia ser tomada como o paradigma de Eleanor Catton) e Henry James.

Veja-se um trecho “jamesiano” do romance:

“Nesse ponto, o negociante comissionado deixou escapar sua deixa. As hipóteses de Nilssen eram sempre do tipo autocorroborativo: ele tendia a favorecer quaisquer provas que melhor aprouvessem a seu senso de conduta, e, igualmente, a agarrar quaisquer condutas  que melhor se prestassem à comprovação. Ele falava constantemente em virtude, assim dando a impressão de ter um temperamento muito entusiasta e otimista, mas sua fé na virtude servia a um mestre bem menos flexível que o otimismo. O benefício da dúvida, para lançarmos mão do provérbio, era um dom fortuito, e Nilssen era muito orgulhoso de seu intelecto para ceder a o poder de uma hipótese.  A seu ver, uma camada protetora de verniz havia sido aplicada às formas cristalinas da alta abstração: ele adorava pôr-lhes repato e admirar-lhes o fulgor, mas ele nunca cogitara descê-las de sua cristaleira esculpida em carvalho, por assim dizer, para senti-las, conformadas, nas próprias mãos. Ele concluíra que Pritchard estava apaixonado somente porque era prazeroso deliberar sobre esse ponto, examinar seu espécime e então retornar ás crenças que há muito possuía…”

[2] VER, por exemplo:  http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/danilo-venticinque/noticia/2014/08/os-blivros-longosb-e-promessa-do-autor.html

[3]E disse Deus: haja luminares no firmamento do céu, para fazerem separação entre o dia e a noite; sejam eles para sinais e para estações, e para dias e anos” (Gênesis, 1, 14)

[4]  Veja-se uma passagem em que se captura uma “pose” de Lydia Wells: “segurava na outra mão um romance de bolso, quase como se o livro servisse de acessório a um desmaio

[5] Veja-se,  por exemplo,  o capítulo “Outro tipo de alvorecer” (da Parte 8- A Verdade sobre a Aurora).

O resumo do capítulo:

“Em que Ah Quee, pondo as mãos sobre as curvas cheias de metal do corpete de Anna, faz uma curiosa descoberta, cujo significado preciso ele não vai imaginar até  oito dias mais tarde, quando a alternância entre os quatro vestidos de musselina de Anna  dão-lhe uma estimativa mental da dimensão das riquezas que contêm, excluindo, é evidente , o pó contido no vestido de seda laranja, o qual Anna nunca usa em Kaniere”.

O capítulo:

“Anna jazia perfeitamente imóvel, os olhos fechados, enquanto Ah Quee corria as mãos sobre seu vestido.  Ele tateou cada parte de seu espartilho com os dedos, delineou cada folho, pegou a pesada bainha e derramou o tecido nas mãos. Seu toque metódico pareceu  ancorá-lo no tempo e no espaço; ela sentiu que era imperativo  que ele tocasse  cada parte do vestido antes de tocá-la, e essa convicção  encheu-a de uma calma lúcida e poderosa.  Quando ele escorregou  o braço debaixo de seus ombros para virá-la, ela aquiesceu sem emitir som algum, levando à boca as mãos moles, como um bebê, e virando o rosto em direção ao seu peito.”

[6] Dessa forma, por exemplo, ficará explicada a “sorte” atribuída a Emery Staines antes de seu misterioso desaparecimento, à Edwin Drood, e ela ganhará uma aura cruelmente irônica.

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